sábado, 21 de novembro de 2015

crônica da semana - a casa ao lado

A casa ao lado
Havia um calor dissimulado, amenizado pelo salpico de talco no pescoço e por um comportamento liminarmente imposto: da feita que me empoava, mamãe sentenciava, não podia me abalar para nada, suar, podia suar apenas aquele pouquinho, inevitável, na caminhada cadenciada pela Barão do Triunfo, procurando aqui, ali, a sombra das pequenas árvores alinhadas no meio da rua.
Era um menino das brenhas do seringal. Tinha uma vaga do governo numa escola particular. Nada da cidade dominava, a não ser aquele traçado inalterável que me levava até a igreja de Aparecida. Mas, nos primeiros dias, independência, isso não significava. Nunca ia sozinho. Minha tia, no caminho para o trabalho, sempre ia comigo. Era aconselhável acompanhar as crianças, principalmente naquele período calorento, silencioso e solitário da uma da tarde.
Antes de bater a campa, a turma formava uma fila protegida do sol por uma mureta que limitava o acesso à sacristia pelo lado da Barão. Era meu momento de interação com os meninos da cidade. As primeiras e importantes informações, aquelas que a família não sabe passar. Aquelas, que só a molecada domina e entende e com jeito e manha, partilha.
A escola que funcionava na Aparecida era da Igreja. Tinha um público distribuído pelas famílias tradicionais do bairro. Junto com o Josino Viana fazia a vez no ensino básico. Entrei lá na Alfabetização, fiz a Primeira, no meio do ano passei para a Primeira Adiantada, e fui me aviando de lápis e caderno na mão, até o final do curso primário. Na Aparecida, foram criadas as minhas bases de vivência, de percepção. A realidade foi se construindo sobre meus pés apertados dentro do Vulcabrás. Era uma escola que tinha merenda, cantigas para cada coisa: para a hora de merendar, para receber visitas, para homenagear os mestres. Lá, a gente até tomava a bença das professoras. Havia um enlace íntimo entre a pedagogia da Aparecida e o entorno pedreirense. A maioria dos pais que deixava os filhos na porta da escola, também frequentava a missa aos domingos. E muitos se conheciam. Eram parentes, amigos de porta.
Mas naqueles primeiros dias, eu era apenas um imigrante do Acre. Fazia a caminhada empoado, me comportava, reconhecia na cartilha o enredo de que Ivo viu a uva e tinha vergonha da minha casa.
Na volta, quem me trazia da escola era a mãe de um amiguinho que morava lá pras bandas da Passagem do Arame. Morávamos com minha avó numa vila construída com enchimento de barro e que em muitos pontos apresentava vastas áreas descobertas, exibindo apenas o esqueleto de finas estacas farpadas na fachada. Me sentia embaraçado para mostrar que morava naquela casa velha de enchimento quase sem enchimento. Parava na casa de alvenaria, ao lado, e com tal folga que parecia que morava ali. A mãe do meu amigo me deixava na calçada, eu me debruçava sobre o muro baixo e dizia algo leve como vou ficar aqui, apreciando o movimento, depois eu entro. E só quando os dois desapareciam além da Lomas é que eu me adiantava para minha casa de barro. Atormentado por aquele acanhamento besta.


Nenhum comentário:

Postar um comentário