Dia
da mãe Rute
A luz pouca
vinda das fretas ou teimando lá de fora do poste da rua catalisava a letargia.
Um cansaço incontrolável sobre o sofá da sala. Um visgo sedoso, desleixado, brilhando
no pescoço. Calor. Desaparecido de mim, quantas vezes me perdia ressonando
desafinado naquele sofá, chegado não sei donde, chirrado, sem responsa,
desabado. Como um filho, sem zelo, me estirava relaxado amarrotando o cortinado
que cobria o sofá da sala. E ela, quantas vezes, como um filho, me tratava, me
atendia, me amparava.
Em silêncio,
tateando na penumbra, com o maior cuidado para não fazer barulho, provia um
lençol, tirava os sapatos, voltava meus braços caídos para o leito do sofá.
Destacava duas tariscas da veneziana para cima e fazia uma brisa boa entrar confortante
pela sala. Nessa hora eu sentia um geladinho no pescoço, imaginava um anjo por
perto, mas não despertava. Virava de lado e tornava o ressono. O braço saltava
vulnerável para as carapanãs. Ela percebia a minha instabilidade, a minha
inquietação. Devia pensar “esse zinho bebeu demais”. E ficava por ali, velando.
Era só a carapanã sentar e ela contra-atacava. Com velocidade e sutileza,
esmigalhava o inimigo sem bulir um tiquinho comigo. No outro dia me contava
tudo, todo o caso passado: “se eu não estivesse ali, os bichos te engoliam”,
dizia com um ritmo maternal. E não saía dali de perto mesmo, até que a noite
esfriasse, eu puxasse o lençol e me protegesse das carapanãs. Tomava um café,
ajeitava uma coisinha aqui, outra ali, esmigalhava outra carapanã. Só se
aquietava quando percebia a calmaria do sono profundo em mim.
Durante o
período que vivi em Rondônia, fui enlaçado pelo carinho irrestrito, fui
abrigado pelo colo aconchegante, fui protegido pelo amor imenso de mãe Rute. A
rainha do lar dos Borges Guimarães. Mulher sem limites para o bem, sem reservas
para as doces humanidades. Fui adotado, me acheguei à mesa da família, sempre
sob a égide de mãe Rute. Sabia ela, o quanto eu precisava, ali naquele longe.
Nas malárias, me
acudia. E foram três das mais radicais. Internado na solidão de um quarto
branco e silencioso, eu sabia que ela uma horinha apareceria. E podia ser uma
tarde mormacenta de domingo com as ruas desertas e caladas. Quando eu dava fé,
lá s’stava ela ao lado da cama, vendo se o soro tava na veia, verificando um
roxinho no meu braço, sentindo uma febrinha na minha testa, acionando a
enfermeira para controlar aquelas pontadas no baço. Passava um tempão comigo.
Conversava. Falava das novidades da Alexandre Guimarães com a rua Sete, a
esquina mais acolhedora da cidade; dava a letra sobre a última peripécia do
Saulo, confirmava aquela curiosidade pródiga da Chiara, “ah, e quem cozinhou
hoje foi a Cláudia. Berna elogiou que só”. E eu só imaginando as delícias da
mesa naquele domingo... “Carneirinho tá pra mina, Éder almoçou com a gente depois
foi tocar lá pras bandas da Rondasa. Joferinho tá subindo o rio e chega pra
semana. Bena sempre aparece.”
Não descartava
um doce para ajudar no tratamento. Levava goiabada cascão. Tinha que recuperar
o fígado.
Havia aquele
momento que a gente lembrava de Belém, do início de tudo, do casamento, do
mercado da juta, do nascimento dos meninos. Do emprego de telefonista.
E me fazia
companhia e me fazia recordar e me ajudava a sarar da terçã. E ficava ali, do
meu lado, como se minha mãe fosse.
Para Rute que,
de fato, minha segunda mãe é, as felicitações e minha mais sincera homenagem pelo
dia Internacional da Mulher.
Que lindo!
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