Café
com pão
Era o meu
primeiro final de semana em Porto Velho. Estava ainda tareando o ambiente,
reconhecendo alguns sinais, respirando os ares do ocidente adentro. Fizemos uma
combina e nos largamos a conhecer a emblemática Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.
Eu até já tinha um ‘a ver’ com a ferrovia, não assim na concordância do
significante, mas na distorção dos significados: é que na época, havia em
Belém, um grupo musical que se chamava “Madeira-Mamoré”. Lembro que vi um show
deles, certa vez, no gramado do colégio Gentil. Todo metidão, ali na beirada do
Madeira, já me achava íntimo daqueles estirões donde, reza a lenda, cada
dormente representa uma vida.
Antes do
passeio, uma parada obrigatória no museu do Rondon, o marechal que deu o nome ao
Estado. Olhares atentos nas coisinhas dele. Na escrivaninha, nos botões
doirados do uniforme, nos teodolitos mais antigos ainda do que o antigo “Vasconcelos”,
naquela maquininha telegráfica tec tec tec. Ao lado do museu havia um espaço
amplo que servia de área de atracação dos vagões e também de embarque. À época,
a locomotiva, a afamada Mad Maria, fazia um trajeto curto, servindo apenas ao
turismo. Chegava apenas até a cachoeira de Santo Antônio, lugar onde Porto
Velho nasceu, a uns oito quilômetros do centro. A lenha queimou na caldeira, o
maquinista puxou a cordinha, a fumaça saltou da chaminé junto com o apito. Piuiiiiií!
E trilhamos o caminho bem ao pegado do rio. Café com pão/ Café com pão/Café com
pão. Lá vamos nós.
Não sou do tempo
da Bragantina, né, então para mim aquela viagem de Maria Fumaça era uma
experiência única. Tava num pé e noutro de sassariqueiro. Vagava de vagão em
vagão. Estacionava na varandinha do último. Imaginava uma cena de caubói, o
bandido se enxerindo detrás de uma rocha, no corte estreitinho da estrada. Pêi,
pêi. Corta! Meu pessoal mandando eu me aquietar e apreciar a viagem da janela,
como todo mundo, assim, naquele balangado lateral legal. Pra lá e pra cá. Pra e
lá e pra cá. Café com pão/Café com pão.
Mais adestrado, sosseguei
o facho e me juntei à turma. Alguém sacou um pandeiro, outro puxou um
tamborzinho e fomos colocando pra fora o acervo que tínhamos trazido para uma
tarde na cachoeira. Rolou o samba. O ano era 1983 e o Arco-Íris tinha
arrebentado no carnaval paraense. Ronaldo Carneirinho que era do Rancho;
Ciroca, um apaixonado pelo Quenzão e eu, Pedreirense do Império, nem ligamos
para o bairrismo e sapecamos o refrão: “Pinta sete, sete cores do meu
coração...”.
Com pouco mais,
com o samba aquecido e as emoções ativadas, começou a chegar gente no nosso
vagão. E todo mundo cantando o samba... “Vem comigo, meu amor”. Mina de
paraense tinha naquele trem. Acabamos ecoando ali, naquelas reentrâncias
abertas na rocha ou na amplitude da planície do Madeira, um ritual de saudade.
Parecia que a gente estava no último arrastão da Presidente Vargas num daqueles
domingos em que as escolas passavam e se diluíam em confrarias e batuques, na
praça da República. Era março. Logo ali atrás, acontecia um dos maiores
carnavais de todos os tempos, em Belém. Na Maria Fumaça muitos de nós
procurávamos aprumar nos trilhos do futuro como novos rondonienses.
O inconsciente
coletivo da comunidade paraense nos uniu naquele vagão. Naquele domingo, nos
largamos a conhecer a famosa Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Parece até que
acordamos tudinho antes. Café com pão/Café com pão/Café com pão. Aquele
balangado lateral legal. O samba do Arco-Íris. Saudade. Emoção. Gente cantando
e chorando, pra todo lado. Piuiiiií.
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