De Bubuia
A foto de capa d’ O Liberal, capturada de um cordial dia 25 de
dezembro, mostrava uma garota flutuando nas águas do furo do Nazário, a rebocar
uma boneca.
O furo do Nazário é um braço de rio que corta boa parte da Ilha das
Onças, naquele dia, palco da campanha de Natal idealizada por um grupo de
cidadãos bem intencionados.
A empreitada procurava levar a alegria do Natal às crianças
ribeirinhas. Nobre atitude, mas com um tropeço grave no enredo: o direito aos
presentes era, por vezes, condicionado aos mergulhos dos pequenos.
Quando o barco em que eu viajava cruzou com o do pessoal da boa
ação, dei que os presentes estavam sendo jogados sem o exigido compromisso com a
pontaria e, por isso, quase sempre, amerissavam. Isto fazia com que a garotada
se abalasse a nado, ao encontro dos brinquedos cruzando o banzeiro provocado pelas embarcações.
Uma cena que se repetiu de fora a fora pelos furos do Nazário, Piramanha
e em outras tantas entradas de água daquelas paragens.
Naquele dia, topei com dois barcos da trupe filantrópica, eu, indo
de Belém para Barcarena, eles, no sentido de Belém. E o que presenciei buliu
com a validade da intenção.
O ato de deixar os brindes à deriva, tenho pra mim, não fazia parte
das vontades dos organizadores, mas foi determinante para evidenciar o caráter fluido,
literalmente líquido, das relações possíveis entre os embarcados urbanos, e os
outros, os ribeirinhos e, ainda, para revelar a duvidosa produtividade da
tarefa (dava pena avistar, pelo caminho, de quando em quando, um pacotinho, de
bubuia, sem criança para alcançá-lo).
Faço rotineiramente essa viagem que, forjada pela beleza da Ilha
das Onças, deixa de ser uma viagem e vira, sempre, um agradável passeio.
Por estes dias, cruzei a ilha de novo, pelo furo, e a mim, me veio
a imagem da garota emergindo com sua boneca pescada das águas, parecendo uma
Iara vencida, um mito inocente, indefeso, abatido por plásticos encantamentos, dissolvido
nos ácidos equívocos da benemerência.
Procurei, agora, longe dos humores natalinos, sonhos infantis pelos
escaninhos da ilha, mas encontrei o arranjo utilitário dos açaizais, a
funcionalidade dos matapis estrategicamente localizados, as criativas (mas impotentes)
engenharias montadas contra a agressiva erosão que, implacavelmente, redesenha
as margens.
Dei que ali, são necessários mergulhos diários, não em busca de
preciosidades impermeáveis, sem pontaria, largadas ao sacolejo da maré, mas em
busca da sobrevivência e de um modo digno de encarar a realidade. Uma realidade
diferente, especial, poucas vezes entendida, outras tantas, distorcida. Um modo
de prover a vida, que longe dos sonhos estratosféricos inspirados pelo desvario
consumista (aqueles sonhos relegados às veredas do aningal), está prudentemente
subordinado às limitações impostas pelas margens dos rios, que, antes de serem
uma provação (como, equivocadamente pensamos), são, por certo, uma bênção.
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