Lata de carne de lata
Estávamos
verdinhos em Belém. Recém chegados do Acre, trazíamos casaquinhos de lã,
costumes, dizeres e perceberes praticamente incompreensíveis. Certo dia, fomos
eu e minha irmã Ana Valéria, mais velha e já se desenrolando na comunicação
belemense, providenciar o jantar, na taberna do ‘seu Manel’. Quando o português
se aproximou do balcão e nos perguntou o que queríamos, minha irmã disparou:
“uma lata de carne de lata”. Pasmo lusitano de esquina. Incompreensão e
chacota. Manelis não entendeu aquela presepada. Um pleonasmo comum no Acre,
desabando sobre o balcão do portuga sem muita cerimônia. “De cortar”, completou
Valéria. Uma lata de carne de lata de cortar. Aí ele, tirando a intenção por um
lado e dedução por outro, foi até a prateleira, pegou uma lata de carne em
conserva, passou um papel de embrulho, cobrou os cabrales da conta, passou o
troco, virou-se para a mulher e comentou algo como “esses indiozinhos do Acre
são mesmo diferentes, ora pois, pois”. E nós demos para trás, pelas calçadas
pouco iluminadas da Pedro Miranda porque mamãe já estava num pé e noutro para
ajeitar o nosso de cumê.
Uma
herança dos ermos da floresta, que aos poucos fomos deixando para trás, essa de
comer enlatados. Perfeitamente explicada pela pesquisadora Cleusa Maria Damo
Ranzi no livro “Raízes do Acre...”, que estou relendo e me assustando, me
indignando com a peleja dos meus ancestrais por aquelas seringais.
“Entendia-se
que o tempo consumido em caça e pesca era prejudicial à produção, prevalecendo,
em conseqüência, a importação geral de alimentos...o extrator da selva,
independente da fauna rica e saudável que o envolvia, era forçado a consumir
conservas como ‘carne de bife, salmão, sardinhas portuguesas, queijos da
Holanda, manteiga francesa’, o que era lamentável, pois a maioria dos produtos
eram...prejudiciais à saúde, além de comprometer a sua qualidade nutritiva.”
O fragmento,
que integra a dissertação de mestrado da pesquisadora Cleusa Ranzi (e que olha
só, é gaúcha), sintetiza o perverso modelo de produção dominante no Acre, na
extração da seringa, que se sustentou na exploração implacável do trabalho do
seringueiro.
Esta
relação de dependência gerou um fenômeno que, eu que nem sou especialista nem
nada, identifico assim, de prima, como um desequilíbrio na balança comercial
contra o seringueiro. Vendia um produto barato para o patrão, comprava um bem
mais caro e o resultado disso era um “em a ver” sem fim. Uma dívida eterna.
Conta-se
nessa fieira de domínio, que o homem da floresta não tinha gostos próprios,
sensações próprias, desejos só seus. Corpo e alma estavam a serviço do látex.
Um negócio, que além de malinar economicamente, trazia também a submissão ao
supérfluo; o vício ao descartável. E às vezes, muita peia. Uma lembrança rala
me traz meu irmão de criação subtraindo uma lata de leite condensado, dessas
importadas, da prateleira, fazendo dois buraquinhos simétricos e tornando tudo
de gute-gute, escondido do meu pai. Uma senhora surra levou, mesmo se
reclamando de desarranjo e cólicas por conta do exagero. Papai não contou
conversa. Baixou o cinto. Mas quem disse que o pequeno se emendou. Daqui pra’li
era outra lata. Outra surra. Leite importado, ora.
Quando
desembarcamos no galpão Mosqueiro/Soure, naquele ano que nem me lembro mais de
tão distante que está na minha memória, éramos a extensão do seringueiro que
não conhecia o tão indicado, hoje em dia, prato colorido. Éramos conhecidos
distantes das hortaliças, dos tubérculos, dos frutos e das saladas. Nossa onda
era mesmo a lata de carne de lata.
Nenhum comentário:
Postar um comentário