Uma Tarde
Não entende a presença dela ali, em plena tarde de
Sábado. Para ela, o Sábado era um dia sagrado. Dormia até tarde. Tomava um
café, ainda com aquela preguicinha do
acordar sem querer e ia despertar realmente,
embalando-se na rede da varanda. Depois, tomava um barril de suco de qualquer
fruta regional e traçava o plano de vôo com possibilidades que iam do passeio à
casa de amigos a uma fugida estratégica para Mosqueiro. O Sábado não tinha hora
pra terminar. Ele lembra que na época da campanha para presidente, tinham uma
turma espertíssíma que fazia a diferença na ‘buxixeata’. Eita! Por aqueles
dias, o Sábado desandava...
Não tinha por que estar ali, naquela tarde. As
pendências estavam todas resolvidas. Nem precisaram de advogado. Foi tudo na santa
paz. Tudo bem divididinho. Ela ficou com o carro, ele com a casa na Pirajá. Ela
levou toda a biblioteca, e ele herdou aquela belezura de discoteca que incluía
aquele disco em vinil, raríssimo, do acreano Sérgio Souto. Tantos anos e não
tinham filhos. Ambos levam a responsabilidade de um exame, que pelo grau de
importância diante das ‘prioridades’, nenhum dos dois, jamais fará. O caso foi
bem resolvido, então, o que a levaria a sua casa numa tarde de Sábado? Ele meio
que surpreso, meio que curioso:
- Mas és tu, mulher? Que ventos te trazem?
Ela, prática, decidida e aparentando pressa:
-Aquelas caixas,
lá no quartinho, Posso dar uma olhadinha?
Ele prestativo, quase que bajulador, indicando o
caminho:
-Claro, claro...
Enquanto ela cavucava por lá, ele buscou na internet,
o último poema do amigo José Miguel Alves. Traga do verso: “O último amigo
arde...” Tenta lembrar o gosto do cigarro. Desiste. Ora, a grande responsável
por ele ter abandonado o maldito vício estava ali, no quartinho dos bagulhos.
“Taí, te devo essa”, murmura, talvez tentando reconhecer que a partilha não
fora assim tão justa.
-O quê? – Devolve ela, demonstrando ter ainda os
ouvidos mais sensíveis do mundo, emendando a seguir– Achei, achei!
E vai saindo. Ele a acompanha. Despedem-se com beijinhos.
Três pra casar (oh, não, pra casar, de novo, não!). De repente, um fogo
explodido das profundezas da irracionalidade (aquela irracionalidade do
coração, que eles tanto se orgulhavam de desconhecer), aquele fogo traiçoeiro,
perturbador, se fez num longo beijo. Um beijo adocicado, fértil, um Nilo de
prazer. Que momento!
Tão bom, meu Deus!
Quando os lábios separaram-se constrangidos,
procuraram os seus rumos. Tomaram pé e tornaram daquele mundo impossível de
existir. Abraçaram a lógica das coisas e entenderam tudo.
Ela se refez. Entrou no carro, puxou da bolsa uns
bregueços (umas hastes finas de plástico, de madeira, do tamanho de agulhas de
tricô; atracadores, grampos, aquelas coisas que havia recuperado das caixas), e
com eles tentou prender os cabelos. Ele aproximou o rosto da janela do carro e
confirmou uma opinião antiga:
-Ficas melhor com o cabelo preso.
Não era isso que ele queria dizer. Na verdade nunca
tinha as palavras para definir o prazer de vê-la com os cabelos daquele jeito.
Não sabia dizer bem o “jeito”: preso, não preso. Não de todo solto. Nem preso,
nem solto, sei lá.
Ela, um tanto desconcertada, fez um arranjo rápido com
as hastes de madeira e ai, ai, ali estava a mulher da sua vida, com os cabelos
misteriosamente arrumados do jeito que ele tanto gostava.
Um sorriso foi o sinal da despedida. Ela deu a partida
no carro e saiu para sempre do seu caminho, naquela tarde de Sábado.
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