Aquela do tatu
Da
minha fase em Rondônia a área que passei mais tempo acampado foi aquela de
Ariquemes (a cidade de 300 mil casos de malária). Tinha uma equipe grande. Uma
peãozada diversa. Gente de tudo quanto é canto do Brasil. Aprendi coisas ali.
Não fazer muitas perguntas, por exemplo. A conta foi eu me animar numa conversa
com um baiano. Prosador. Gingador. Uma simpatia. Tinha uma cicatriz que cortava
o lado esquerdo do rosto de fora a fora. E eu, menino besta que era, caí na
leseira de perguntar a origem daquele talho. Pra quê. O camarada emburrou. Me
deu uma dura naquele estilo, “essas coisas não se perguntam pra ninguém”.
Rapidola que entendi a parada e mais cuidadoso fiquei com os meus repentes
curiosos. Um belo domingo, tive que interromper a minha folga na vila que eu
morava e correr para o acampamento. Passaram um rádio de lá dizendo que o
baiano tinha tomado umas catuabas e virado cavalo do cão. Pegou um terçado de
uso da equipe de topografia, amolado não! E saiu dando planada no qual pega em
meio à galera. Acertou uns dois. Foi contido pelos acreanos macetudos, amarrado
e jogado num pé de árvore até que a polícia foi buscá-lo. Passei a noite no
acampamento e na segunda fui à delegacia negociar com o delegado a soltura
dele. Quando cheguei lá, já com o termo de demissão dele assinado e com a
cachorra (mala) dele arrumada, qual não foi aminha surpresa. O baiano estava no
maior flozô com os investigadores. Era um quiquiqui, uma atenção. Fazia
mandado, passava um café, comprava cigarro na esquina. Preso, preso, não
estava. Quando foi liberado, saiu dando tiauzinho pros policiais e sumiu no
trecho. Figuraça.
No
rol dos transcendentes, figurava o Geléia. Era acreano. Dividíamos o barraco
dos graduados. Ele era chefe de acampamento, o líder da turma e também, uma
espécie de guru. De conselheiro, sábio. De noitinha juntava a turma no barraco
e, à luz de velas, enveredava por filosofias, testemunhos. Tinha uma hora que
rolava um transe e ele disparava frases do tipo Deus é oligirei dinun’olium
vertegno. Eu, da minha rede só ficava ouvindo aquela presepada. Não dava um
pio. Creditava aqueles arrebatamentos a uma herança do Daime acreano, sei lá,
ao fervilhamento das idéias remanescentes de um passado de Ayahuasca e Mariri.
Refeito, voltava ao mundo dos mortais contando que tinha 14 mulheres, 25 filhos
e que o irmão era intendente de um lugarejo encravado nas montanhas bolivianas.
Mas
o que me chamava mais atenção nos acreanos, nem eram as esquisitices do Geléia.
Era o uso redundante que eles davam às consoantes alveolares /s/ e /z/. Um grupo
grande de conterrâneos, tínhamos na equipe e todos revolucionavam a fonética.
Três, era Treis’zi. Vocês, voceis’zi. Tempos depois, tivemos uma arrumadeira
acreana, na vila, que se desesperava dizendo “meu Jesuis’zi não passei a roupa
do João de Deus’zo”. Fenômenos lingüísticos riquíssimos grassavam pelos
arredores de Ariquemes.
E
teve aquela do tatu. Final de tarde. Os cachorros acuaram o bicho na toca. A
turma foi até lá e trouxe o tatu amarrado com sisal para o barraco. Foi aquela
latomia, lá pras bandas da cozinha. Colocaram o tatu sobre a mesa e ficaram
especulando sobre a esperteza do animal. Alguém assegurou que ele tinha uma
fraqueza nas reações se amarrado pelas orelhas. Ficava como se mundiado.
Paralisadinho. Os incrédulos descartaram a possibilidade, mas uns mais afoitos resolveram
testar. Desamarraram as patas do bichinho, seguraram na carapaça, e amarraram
as orelhas. Soltaram. Foi um tiro só. O tatu deu um pinote e sumiu na mata. O
peão que deu a idéia, claro, pegou um samba.
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