Golpe beiçudo
Golpe
pra mim, até uma certa idade, sempre foi um talho no pé que se abria em beiços
salientes e se sumia pra dentro do calcanhar em carne viva. Invariavelmente,
era tratado aplicando-se uma tira retirada de algum trapo à mão, um polvilhado
de sulfa, um nó apertado para estancar o sangramento e um cachingamento
previdente na ponta dos pés para não magoar a ferida. Para ser um golpe de
verdade, com todas as propriedades golpistas tinha ainda que ter como agente
causador, um afiado e escondidinho caco de vidro, normalmente à espera de um
pé-de-moleque, próximo à linha de fundo de um campinho doméstico ou nos
gramados da Duque. Neste caso, do canteiro da Duque, fora dolosamente deixado
por lá, por um daqueles sacaninhas insatisfeitos que empastelavam a pelada e
jogavam vidro. No caso doméstico não havia dolo não. Era um lixinho do lar
esquecido desde a última limpeza no quintal.
Depois,
mais taludo, a palavra ‘golpe’ passou a ter uma conotação bem mais dolorida que
uma brecha pustemada no pé. Mas não foi assim, tipo zap-zap não.
Quando
meus amigos começaram a desvendar as malinagens que os militares estavam
fazendo, no poder, eu ali na calçada daquela sorveteria, na estrela, dois cantos
após a Escola Técnica, fiquei perplexo. Um tantão assim desnorteado. Não era fã
dos militares, mas também não tinha bronca deles. Até admirava o pessoal da
farda. Apreciava o garbo, a altivez; atinava para o ar soberano dos pelotões
nos desfiles militares. As referências que tinha, inclusive experimentadas na
família, é que eram pessoas de caráter inatacável, de índole rebuscada. Lembro
que tínhamos um amigo que era PM. Ele nos visitava. Portava sempre um
tresoitão. Inspirava respeito. Pisava forte com o par de coturnos sobre o
assoalho que se estirava pelo corredor, quando ia tomar um cafezinho lá na
cozinha de casa. Lembro. Vez por outra sumia. Depois, muito depois, liguei as
conversas que ele traçava conosco, nas suas reaparições, com a guerrilha do
Araguaia: viajava para as campanhas.
As
histórias que os meninos contavam ali na calçada da sorveteria ajudavam a
montar alguns cenários. Fui tomando tento, deixando de ser um moleque alienado
por aqueles dias em que a gente se juntava depois da aula e ficava até altas
horas da noite trocando experiências, construindo amizades, refazendo destinos,
gastando nosso dinheiro da passagem de ônibus em picolés; e depois indo na
pátria amada pra casa sob a luz das estrelas, deixando para trás a Estrela, rua
que margeava a Escola Técnica, se estendia pros arrabaldes e vinha me deixar na
Pedreira.
Éramos
uma turma de amigos que mais tarde entenderíamos porque um golpe beiçudo no pé
era menos penoso, menos remoso, menos desditoso que todo aquele engalanado pelotão
militar que governava o Brasil.
Houve
de fazermos uma grande passeata em favor da meia-passagem já no início de uma
nova era, a incompreendida fase oitentista. Mas o pau ainda comeu feio na
Avenida Nazaré. Uns quantos caminhões ‘tormara-que-chova’ enfileiraram-se ao
longo da rua despejando levas de soldados furiosos. No corre-corre, meu amigo
de repente parou no meio da rua e apontou corajosamente contra um contingente
denso que se aproximava: “desgraçados, desgraçados! A lei de Deus há de pairar
sobre vossas cabeças!”. Não mais o vi. No meio da confusão, peguei um
transpesco e desabei sobre um caco de vidro. Fiquei assustado quando levantei.
Estava com a bata da Escola Técnica. Saquei uma tira da bainha e amarrei minha
mão com força para estancar o sangue. Na palma da mão, uma teba d’uma brecha me
esclarecia de vez o sentido da palavra ‘golpe’.
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