Altamira do Xingu
Era uma noite singularmente
bela. Estávamos na época da vazante. O rio Xingu havia migrado das margens e
deixado para trás um aprazível rastro de praias e múltiplas lagoas. Naquela
noite, estávamos inquietos (ou, ‘desinquietos’, como, com muita propriedade,
definiam os peões). Era a véspera de baixarmos para a cidade, depois de uma
esmerada campanha no feixe de diques projetados para a barragem de Belo Monte.
A ansiedade tomava conta da gente.
Tudo arrumado para a
debandada, deixamos os barracos, e ganhamos a praia para descontrair um pouco
com uma prosa e apreciar o céu. E que céu! (a gente, na cidade, perde a
noção do quanto o céu noturno é deslumbrante. Estamos acostumados com um
conjunto limitado de estrelas ou com uma faixa difusa, esbranquiçada, tomando
conta da noite. Em lugares afastados e com pouca iluminação incidente,
entretanto, o que era uma ligeira impressão, uma vaga lembrança, um tímido
estímulo aos olhos domados pela urbanidade, se transforma numa malha cintilante
infinitamente preenchida por pontos brilhantes. Extravagantes,
desinibidos). Naquela noite, o céu, solidário com aquela margem esquecida
do mundo, e de par com a suntuosa planície do Xingu, estava absurdamente
bonito. Inesquecível.
O rio Xingu murmurava ao
longe, entre os caminhos encachoeirados, e nós ali, naquele momento,
usufruíamos das boas heranças deixadas pela sua benevolência (as lagoas que são
formadas quando o Xingu seca, aprisionam uma enorme quantidade de peixes.
Durante todo o período que passávamos acampados, sempre sobrava um tempinho
para mariscar. Fazíamos um curral e íamos concentrando ali a nossa produção.
Aquilo era uma bênção. Nos primeiros dias, a gente pegava peixe até sem isca.
Até eu, que tinha uma pissica danada, pegava uns taludos assim, ó, deste
tamanho (quer dizer, quer dizer...Um pouquinho menor). Depois, ficavam ariscos,
mais difíceis, mas no início, vinham sem reclamar. Na cidade, aquele peixe era
de muita valia. Era sinal de mesa farta para o nosso povo, que naquele trampo
desgastante, não ganhava o quanto merecia, ou melhor, ganhava só o do aviamento
do mês, e olhe lá. As lagoas do Xingu, então, ajudavam, e muito na ‘intera’).
Aquela noite cheia de estrelas, e de peixes formigando no curral, era a
ante-sala da cidade. Precisava passar. Mas nos convenceu, de que não havia
pressa...
Chegando em Altamira, cada
qual com a sua fieira, era hora de cuidar. Ali, as coisas mudam. A batida é
outra. Não havia, mais a relação de trabalho, ou tarefa. Não havia o ‘sim,
senhor’ incômodo. A gente se distribuía pelas esquinas e cada um ia procurar,
ao seu jeito, viver.
Eu, como não tinha um pinto
pra dar água, dividia a minha quota, atravessava a ponte e me socava, no
domingo, lá pro bairro da Brasília, na casa de um ou de outro para um peixe
frito com caipirinha.
No período em que a gente
ficava na cidade, de folga, era assim. E eu ficava descobrindo ‘o jeito de ser’
daquele povo adorável. E me envolvia. Tentava aprender umas palavras em Kaiapó
com o Chico, com o Pedro Cruz, com o seu Zé. Admirava o talento do Robério na
arte do entalhe (aliás, Robério dominava todas as artes). Buscava aprender com
o Pereira, com o Ricardão, com o seu Elcino, com o Cristóvão, os segredos para
administrar uma família. Encontrava na minha irmãzinha Cléo, o conforto e o
acalanto que um homenzinho de 23 anos sempre precisa quando está longe da
mamãe.
Altamira mora no meu
coração. As lembranças que tenho de lá falam de um céu com bilhões de estrelas;
falam de um povo delicado e companheiro e falam de um rio extremamente
generoso.
Altamira é do Xingu e o
Xingu jamais faria mal à sua gente.
Vi e vivi coisas assim. As histórias vividas por aquelas bandas são sofridas, mas deixam uma saudade...
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