O Madeira engoliu o Acre
O
rio Madeira, na frente de Porto Velho, se acalma. Bem na descida do museu da ferrovia,
faz um remanso auspicioso, quase silencioso.
Retrai-se comedido, afável. Descreve um extenso volteio em baixa
velocidade, ganha o canal, e lá ao longe ressurge irrefreável. Traça um
percurso versátil, contraditório, envolvente e sedutor, na frente da cidade.
Como se quisesse ser contemplado, apreciado com atenção e prazer.
Nos
quatro anos que passei em Porto Velho, era minha batidinha certa, apreciá-lo.
Em pontais moldados à margem do rio, dispunham-se alpendres aprazíveis, espaços
de lazer que se sobressaiam na paisagem, conhecidos como ‘mirantes’. De lá
avistávamos alguns pontos marcantes do centro da cidade; acompanhávamos, até um
certo trecho, os trilhos da ferrovia e reconhecíamos lá embaixo Mad Maria, a
famosa locomotiva luzindo ao sol. Mas o que inebriava mesmo era o garbo do rio
Madeira deslizando ao largo dos pontais.
Virando
de rumo um pouco, ao levantar da vista, no curso acima, o rio exibe as
primeiras ilhas encravadas no meio do canal, um borbulhar tímido e laços
simétricos de água contornando as elevações dispersas. Se a gente teimar, a
vista ainda alcança os primeiros sinais da cachoeira de Santo Antônio, um tantinho
adiantado mais além.
Conheci
as cachoeiras próximas de Porto Velho. A partir de Santo Antônio, que foi o
embrião da cidade, a inclinação do rio sofre acentuadas, sucessivas alterações.
Começam as sequências de vertiginosas corredeiras. Santo Antônio, Teotônio, Jirau,
Caldeirão...
Temidas
e amadas. Verdadeiras e romanceadas (a história da donzela que se afogou em uma
das cachoeiras porque queria transportar um piano rio abaixo desde a Bolívia
está presente tanto na composição ficcional de Márcio Souza, em “Mad Maria”,
quanto na narrativa histórica de Manoel Rodrigues Ferreira na pesquisa que
gerou o raríssimo “A Ferrovia do Diabo”). No curso à montante, o rio Madeira
inclina-se à soberba. É um rio genioso. Armado em seu leito de poderosos blocos
rochosos. Nada amistoso, aceita poucos
em seu leito. A estrada de ferro Madeira-Mamoré surgiu, exatamente como alternativa
a este jeito indócil do Madeira, à sua pouca vocação à navegação. Quem por ele
se arriscava, como a donzela e seu piano, não varava do rebojo.
Por
esta pujança, o Madeira foi tragado pelo progresso e já que não foi doutrinado
à hidrovia, não sem dor, dobrou-se às grandes barragens. Já estão em estágio
avançado de construção, as usinas de Santo Antônio e Jirau.
O
nível do rio Madeira em Porto Velho atingiu a cota mais alta dos últimos 100 anos. Está mais
de 18 metros acima do nível normal. Parte da cidade está submersa. Ao longo da
BR 364, já entrando no Acre, a rodovia desapareceu sob as águas. O
transbordamento do Madeira para além das margens inundou a estrada nas regiões
em que ela passa rés-o-rio e isolou o Acre. O acesso por terra hoje só é feito
com muito heroísmo. Há milhares de desabrigados na
região.
Assim,
de prima, seria leviandade culpar as hidrelétricas por estas inundações. Mesmo
porque, lá do outro lado, ao norte, o rio Acre também subiu, alagou parte de
Rio Branco e, pelos conformes, não é íntimo do Madeira.
O
que é certo é a ratificação de um regime de chuva distinto com origem nas
regiões do Brasil central, e que alimenta, de forma bem generosa este ano, os
rios da margem direita do Amazonas (aqui embaixo, o Tocantins e o Xingu já
crescem de tamanho). Entretanto, tal como se mira o peixe e o gato, há de se
mirar à montante e à jusante, porque os rios, é bem capaz que reajam, percam a
calma, quando se veem barrados.
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