Meu fio de prumo
O
mês de Janeiro está ali, no retrovisor, dando tiauzinho pra gente e eu aqui, me
vou me aviando, para encerrar em tempo, a sequência de crônicas homenageando
Belém.
Nesses
nove anos que estou aqui na coluna, tenho cumprido este rito. É tabelado: todo
início de ano, dedico meus escritinhos a Belém. A cidade, esta cidade rente ao
rio, quente e pródiga de chuviscos e mangueiras; a cidade que me acolhe e me
mundia, que me expõe e me protege. Esta cidade santa e pecadora, esta Belém
indulgente e altruísta, merece.
A
homenagem desta feita se deu com uma construção um pouquinho diferente: as
crônicas foram escritas na terceira pessoa e ambientadas em terras distantes (e
quem conhece a minha prosa em primeira pessoa sabe que a terra distante é o Acre
e a protagonista do enredado é Luzia, minha mãezinha querida). Fiz assim,
porque queria ver Belém de longe, com os olhos saudosos de uma paraense que
vivesse, verdadeiramente a distância; que percebesse o apartamento como sendo
uma coisa irreversível, sem volta, sem volta a Belém. Penso que minha mãe,
casada com um seringueiro, já com três filhos, e integrada à vida do seringal
(vivendo o quebra jejum, articulando a comunhão dos bichos, tiritando sob o
casaquinho, num frio de verdade, thu thu thu thu!), quando saía do ar por uns
momentos, recordando passagens e cenários de Belém, sofria pelo desterro e ao
mesmo tempo se resignava com o exílio, consoava-se ao trinado intolerante do
nunca mais.
E
esta é uma sensação absurdamente insuportável. Aquela que te revela que jeito
não há. A própria resignação é insuportável. A perda da capacidade de mudar, de
transformar é insuportável (embora esta capacidade possa plenamente reviver,
como provou mais tarde, minha mãe, ao voltar para Belém, subvertendo o destino,
o tal trinado do nunca mais, e nos trazendo nosotros, os acreaninhos, agarrados
à barra da saia). Esta é a sina dos que amam Belém, padecem perdidos no ermo,
sem esperança de voltar, mas um dia voltam.
E
aqui estou eu, em primeiríssima pessoa, retornado e relatando a minha alegria
de caminhar pelas ruas de Belém, numa manhã chuvosa de janeiro. Sem sombrinha,
sem receios e com a ferida da distância já cicatrizada. Mas já sofri muito.
E
quando a gente sofre de saudade, recorre a cada signo, a cada presepada sentimental
inexplicável...
Certa
vez, estava em Altamira, entranhado ao mato baixo da margem direita do Xingu.
Tínhamos que fazer uma grande abertura no lajeado (um buraco que chamamos de
trincheira) para expor uma parede de rocha que fosse estudada por um especialista
contratado a peso de ouro.
Às
vésperas da chegada do consultor, com a equipe já
finalizando os preparativos no teatro de operações, eu estava acompanhando os
trabalhos, quando uma chuva pesada nos pegou de surpresa em pleno mormaço da
tarde e interrompeu as tarefas. Acudi-me a um vão moldado num imenso bloco de
migmatito e fiquei por ali me protegendo do aguaceiro naquela loca de pedra.
E
ali, ouvindo o som das gotas da chuva tanto batendo quanto querendo furar a
rocha, recordei um dia, lá na Vila Mauriti, uma das festas que mamãe fazia pro
São João. No sonoro, aquele que para mim, hoje, é um cult brega: “ando só, vivo
só, feito louco aventureiro a vagar”. Entristeci com a minha solidão, ali
naquele descampado do Xingu. Esqueci do consultor, das lidas urgentes e chorei
de saudade da mamãe, da minha cidade. Bateu aquele banzo medonho.
Hoje,
em primeiríssima pessoa, estou de volta para minha Belém, para o meu mundo, para
o meu fio de prumo e nunca mais esqueci o significado da palavra saudade.
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