A comunhão dos bichos
Antes de
clarear, tateava pelos arredores da casa. Separava as vasilhas cada qual com o
seu tanto e a sua qualidade. Quando entrava na casa, arrastava a sandália em
silêncio para não acordar as crianças que dormiam nas redes atadas, na
diagonal, pelo corredor. Apanhava sempre alguma coisa lá dentro. O ‘fós’soro’,
um cotoco de vela, o abanador trançado de palha, uma caneca esmaltada com um
gole de café. Aproveitou o vão da janela entreaberta e deitou lá fora, sobre a
mesa, o bule e a carteira de Continental sem filtro. Aquela visita ao interior
da casa era um resumo de todas as suas dúvidas e carências; uma síntese do vasto
leque de riquezas e honras de que ela dispunha. De passagem pelo estreito corredor,
apanhou do seio da pernamanca que marcava o meio da parede, o pente azul para
se pentear enquanto rezava, bem baixinho, num quase sufocado assobio, num
restrito e débil sopro, as matinas. Uma oração tecida num recitado bilabial
restringido, uma cantilena fricativa reprimida: Ave Maria...bzzzz/Louvado
seja...bzzzzzz.
Costumava,
nessa hora, antes do sol surgir, adiantar as arrumações da casa. Dispôs-se um
tempo diante da tramela que fechava a janela da sala e resmungou, reclamou porque
ela era tão molinha, bastava uma ligeira perturbação no ambiente para que a
chapinha de madeira rotacionasse e deixasse a janela só encostada. Tinha que resolver aquilo. Deslizou pelo
ladinho da rede avarandada, atada de parede a parede e por ali se demorou um
tempo. Espreitou, campanou, sem descuidar da cantilena silenciosa: Bzzzzzz. E
num átimo, com extraordinária precisão, esmigalhou um carapanã cheinho de
sangue, no braço do filho mais novo que, inocentemente, dormia. Fazia parte da
lida diária, proteger o sonho das crias. A ronda pela sala terminava no sofá,
que disposto ao longo da parede, bem embaixo do quadro azulado do Sagrado
Coração de Jesus, parecia tomar mais espaço que o necessário. Alinhou o imenso
cortinado florido que cobria o móvel. Puxou pra cá, esticou pra lá, mediu e
definiu a distância até o chão, passou a mão espalmada pelo assento, ordenou os
vincos do tecido. Era um cuidado com aquele sofá! Era o seu bem mais estimado. Era local de receber visitas, de fazer as
distinções da casa. À frente, a mesinha de centro suportava um pequeno
emoldurado. Um contorno improvisado de madeira e metal acomodando uma
fotografia. Um cartão postal. A luz do sol ainda procurava céu para reinar e
assim, neste lusco fusco, não conseguia discernir o retratado nem os dizeres do
cartão. Mas imaginava. Traçava a inclinação dos ônibus dobrando a Avenida
Portugal; reconstituía, no ar invisível daquela sala, a simetria das torres do
Mercado de Ferro. Por vezes, o olhar pesado, forçado, desviava do cartão e
mirava breves feixes que já se anunciavam nas frestas da casa. Era o dia
chegando. E a luz ainda tímida lhe trazia à memória o estirão de lâmpadas que
tingiam de amarelo a fieira de postes que margeava a Tito Franco. Mas o seu
olhar se abrandou, porque na verdade, não queria ver nada dali daquele cartão.
Queria sentir. Cerrou os olhos, esboçou um sorriso de prazer e recordou com
muito carinho as manhãs à beira do pequeno igarapé que corria por detrás da
Pedro Miranda e que era cheio de pedrinhas preciosas arredondadinhas.
Quando o sol
iluminou com vigor a copa das árvores mais altas, ela largou o cartão, sobre a
mesa, escorou a moldura no bibelô da bailarina e saiu para o quintal.
E dia claro, de
cada vasilha que estava ali no alpendre, tirava um punhado e jogava em rajadas
densas no terreiro. E chamava: Thu thu thu thu thu! E vinham as galinhas, os
patos, os pintinhos. Fosse milho, fosse ração. E vinha o carneirinho e o porco
também vinha. Fosse farelo, fosse resto de comida. Até o cabrito e o burrinho,
vinham. Pela comida e também pela algazarra, o papagaio e a picota,
sassaricando vinham. Thu thu thu thu thu! Ela chamava.
E na legenda do
cartão que amparado pela bailarina jazia, lá na mesinha de centro da sala,
estava escrito; “Lembrança de Belém. Feira do Ver-o-Peso. Belém- Pará-Brasil”.
Parabéns pela bela crônica! Vamos para as 100mil visitas!!!
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