Euclides
Não
sei se estou sendo radical ou, de certa forma, extravagante. Mas tenho
sustentado, para os meus colegas de escola, a opinião de que um geólogo, para
ser um geólogo de verdade, tem que ler o Euclides da Cunha.
É
claro que esta minha opinião não encontra eco na grade curricular do curso
(outras matérias são consideradas mais urgentes). Abriga-se, porém, na conduta
profissional, no perfil visionário, na articulação contextual que reconheci no
geólogo Roberto Moscoso, lá pelos idos de oitenta e poucos, em Rondônia.
Moscoso
faz parte de um grupo de geólogos que não se limita ao catecismo acadêmico (e
neste grupo destacam-se escritores, músicos, pensadores, poetas, e ora vejam,
só pra provar que nenhum modelo é perfeito, até políticos).
Roberto
Moscoso é um dos meus ídolos até hoje. É do nordeste. Um amante do semi-árido.
Puxava, naquela época a brasa pra sardinha dele. E assim, tendencioso, me
indicava João Cabral, Patativa do Assaré, a estética ligeira de Capiba...Mas no
fundo era um sentimental. E universal. Por causa do Moscoso, conheci Pablo
Neruda, o pessoal do Planeta Diário (hoje Casseta e Planeta), o Angeli,
Sartre... Percebi uma parte do céu noturno e criei em mim a necessidade de um Euclides
da Cunha na minha vida.
E,
engraçado, as coisas vão, vão acontecendo...
Houve
uma ocasião, já aqui em Barcarena, que os peões mais saidinhos, naquela
zombaria corriqueira e desmesurada, no caminho até a fábrica, cognominavam este
ou aquele mais discreto ou retraído, de “Euclides da Cunha”.
Na
época a rede Globo estava exibindo a série ‘Desejo’. A tragédia na vida do
grande escritor se consumara e inspirara (ah, nosostros, peões, sabe como é) a
galera no ônibus (depois de um tempo é que fui sacar que no entendimento dos
operários do turno da noite, “Euclides da Cunha” era sinônimo de marido traído,
no popular: o dito corno).
Passada
a indignação e pesquisando um pouco sobre a vida do autor de “Os Sertões”, fui
descobrindo aquele tempero angustiante que marca a vida dos grandes gênios. No
caso de Euclides, um desenrolar insano que desandou para a descendência e para
a nulidade de todo e qualquer senso no posterior desencanto amoroso de Ana (de
Assis) ante o mito Dilermando (que depois de todas as derrotas impostas ao
grande Euclides, dizem as más línguas, ainda propôs-se vilipendiar-lhe a obra).
Em
2004, comprei uma edição, das baratas, de “Os sertões”. Fui tomado de todos os
medos e todas as objeções diante do precioso relato. Resisti à tentação de
começar pelo fim, naquele momento impressionante em que o autor descreve a
queda de Canudos (pra lembrar: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda
história, resistiu até ao esgotamento completo. Expegnado palmo a palmo, na
precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus
últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois
homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil
soldados.”).
Comecei
do começo e vi o quanto Euclides da Cunha é importante, não só para a
literatura nacional, mas para a ciência, para o entendimento das interações
homem-natureza. Muitas das coisas que estão sendo exploradas como temas
contemporâneos, modernos já foram dissecados em Os Sertões, por Euclides da
Cunha. (o próprio conceito de meio-ambiente está condensado nos três capítulos
que compõem o livro : A Terra, O Homem, A Luta). Uma das melhores explanações
sobre o processo de desertificação (tão amplamente aludido hoje em dia) é
elegantemente desenvolvida pelo escritor. Para os amantes das ciências da
Terra, o primeiro capítulo, vale por um bifinho.
Outro
dia, um amigo, indignado com o eterno sofrimento do povo nordestino, questionou
a razão daquele povo viver em lugar tão inóspito. A resposta, seja do ponto de
vista sociológico, quando a obra esclarece sobre o surgimento dos jagunços e
anuncia o fenômeno do cangaço, seja pela ótica antropológica, quando interpõe a
crença à razão de viver, está em Euclides da Cunha, que se foi há 100 anos,
vítima de um sentimento desconhecido que costumamos chamar de amor.
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