Eu sou neguinha II (Ciranda)*
Eu sempre fui comunista. Certa vez, em meio a
uma acirrada luta por uma sociedade livre e igualitária, alguém sugeriu que raspássemos
a cabeça e fôssemos para as ruas mobilizar as massas. Uma boa idéia. O povo
unido jamais será vencido...A não ser pelo ilusionismo besta das vanguardas.
Passou pela intenção do maluco que, para que melhor nos relacionássemos com o
povaréu que liderávamos, precisávamos levar uma insígnia na testa nos
identificando como os mensageiros da salvação. Alvo fácil para uma bala, a
presunção, reflito hoje. A certeza absoluta. O desdém pelos revezes. A cega
afirmação é sempre perigosa. Incerta. Me abate como presa fácil.
Eu sempre fui comunista. Mas nunca tive a face
indistinta dos blackblocs, a valentia de uma estudante franzina, ou o destemor
de um adolescente tutelado. Também, nunca usei da foice pra cortar um trançado
de plantas altas ou de um martelo para dobrar os pregos que atapetam meu
caminho. Não sei desenhar bandeiras. Nem colorir estratégias. Tenho
dificuldades de decifrar enigmas desprovidos de finalidades. Busco a calma em
cada alma vã. Penso isso ser em vão. A calma apodrece a alma. A paciência
banaliza o tempo.
A verdade absoluta entorpece, depois, arde.
Queima como fogo e destrói, enrijece sonhos, congela corações, põe a liberdade
a torniquetes.
Eu sempre fui comunista, mas nunca amei
ninguém. Nunca chamei por nomes e nem tateei corpos. Suspiros, transes, me são
deleites fugazes. Vislumbres longes. Sou metálica, fria. Tenho a palma da mão estriada.
Minhas escolhas...
“Quando brincava de ciranda só pensava em quem seria o
próximo no meio da roda, o escolhido. Hoje, permaneço acorrentada nos passos
que não dou, nas decisões que deixo para amanhã, para daqui a 10 minutos. Nas
indecisões sobre o escolhido.
Parei de ler, parei de perambular com o frio da
madrugada, parei no tempo. Sinto que afundo cada dia mais e mais nessa solidão
inquieta, uma solidão diferente, uma que não deixa os olhos sangrarem, não
permite vômitos ao som do olhar...e as mãos agora aborrecidas, não desenham
acorde que seja. Conformidade. Nunca o próximo. A quem escolher?
Dos amores que burlei, que deixei berrando
serenatas em minha janela, sinto falta da paixão que emitiam. Devia ter
guardado ao menos um na mesa verde do quarto, para que ninguém o tocasse, que
poeira nenhuma repousasse sobre seu peito, só para ter algo em pronome
possessivo (meu, só meu). E quem se torna objeto do outro? Mas perdi para a
certeza da chuva que tilinta no vidro da janela todo dia.
Essa chuva traz silêncio e água para dentro de
casa. Aumenta aquela solidão do peso de ser alguém na vida; descanso do corpo,
no copo. Esqueço de viver alguém na vida e sinto dores tênues do dia-a-dia, sem
vontade de sair e berrar o que sei, mesmo sendo pouco, mesmo sendo o normal.
Porque não é normal estar do lado seco da chuva.
Recebo conselhos abstratos, mal elaborados por
corpos sem copos. Nunca pensados verdadeiramente. Vidas sem rimas. E submeto o
clarão da vela ao esconderijo na luz do poste.
Quando vaga na madrugada o silêncio veste o berro de agonia, que dança sonhos. Morte singela. Quem disse que morrer não dói, já viveu todas as mortes possíveis? E (morrer) não dói no peito de quem fica?
Quando vaga na madrugada o silêncio veste o berro de agonia, que dança sonhos. Morte singela. Quem disse que morrer não dói, já viveu todas as mortes possíveis? E (morrer) não dói no peito de quem fica?
Transformo em sorriso cada passo que não
dou. Eles não podem saber que, na verdade, não vivo. Sinto que estou no
centro daquela velha ciranda, mas sem gema que se quebre, sem reza que me
valha.”
Eu sempre fui comunista. Hoje sou neguinha e
minhas escolhas, vou largando para trás
*Em
parceria com Caroline Brito (entre aspas)
Nenhum comentário:
Postar um comentário