sexta-feira, 13 de setembro de 2013

crônica da semana - neguinha II

Eu sou neguinha II (Ciranda)*
Eu sempre fui comunista. Certa vez, em meio a uma acirrada luta por uma sociedade livre e igualitária, alguém sugeriu que raspássemos a cabeça e fôssemos para as ruas mobilizar as massas. Uma boa idéia. O povo unido jamais será vencido...A não ser pelo ilusionismo besta das vanguardas. Passou pela intenção do maluco que, para que melhor nos relacionássemos com o povaréu que liderávamos, precisávamos levar uma insígnia na testa nos identificando como os mensageiros da salvação. Alvo fácil para uma bala, a presunção, reflito hoje. A certeza absoluta. O desdém pelos revezes. A cega afirmação é sempre perigosa. Incerta. Me abate como presa fácil.
Eu sempre fui comunista. Mas nunca tive a face indistinta dos blackblocs, a valentia de uma estudante franzina, ou o destemor de um adolescente tutelado. Também, nunca usei da foice pra cortar um trançado de plantas altas ou de um martelo para dobrar os pregos que atapetam meu caminho. Não sei desenhar bandeiras. Nem colorir estratégias. Tenho dificuldades de decifrar enigmas desprovidos de finalidades. Busco a calma em cada alma vã. Penso isso ser em vão. A calma apodrece a alma. A paciência banaliza o tempo.
A verdade absoluta entorpece, depois, arde. Queima como fogo e destrói, enrijece sonhos, congela corações, põe a liberdade a torniquetes.
Eu sempre fui comunista, mas nunca amei ninguém. Nunca chamei por nomes e nem tateei corpos. Suspiros, transes, me são deleites fugazes. Vislumbres longes. Sou metálica, fria. Tenho a palma da mão estriada. Minhas escolhas...
 “Quando brincava de ciranda só pensava em quem seria o próximo no meio da roda, o escolhido. Hoje, permaneço acorrentada nos passos que não dou, nas decisões que deixo para amanhã, para daqui a 10 minutos. Nas indecisões sobre o escolhido.
Parei de ler, parei de perambular com o frio da madrugada, parei no tempo. Sinto que afundo cada dia mais e mais nessa solidão inquieta, uma solidão diferente, uma que não deixa os olhos sangrarem, não permite vômitos ao som do olhar...e as mãos agora aborrecidas, não desenham acorde que seja. Conformidade. Nunca o próximo. A quem escolher?
Dos amores que burlei, que deixei berrando serenatas em minha janela, sinto falta da paixão que emitiam. Devia ter guardado ao menos um na mesa verde do quarto, para que ninguém o tocasse, que poeira nenhuma repousasse sobre seu peito, só para ter algo em pronome possessivo (meu, só meu). E quem se torna objeto do outro? Mas perdi para a certeza da chuva que tilinta no vidro da janela todo dia.
Essa chuva traz silêncio e água para dentro de casa. Aumenta aquela solidão do peso de ser alguém na vida; descanso do corpo, no copo. Esqueço de viver alguém na vida e sinto dores tênues do dia-a-dia, sem vontade de sair e berrar o que sei, mesmo sendo pouco, mesmo sendo o normal. Porque não é normal estar do lado seco da chuva. 
Recebo conselhos abstratos, mal elaborados por corpos sem copos. Nunca pensados verdadeiramente. Vidas sem rimas. E submeto o clarão da vela ao esconderijo na luz do poste. 
Quando vaga na madrugada o silêncio veste o berro de agonia, que dança sonhos. Morte singela. Quem disse que morrer não dói, já viveu todas as mortes possíveis? E (morrer) não dói no peito de quem fica? 
Transformo em sorriso cada passo que não dou. Eles não podem saber que, na verdade, não vivo.  Sinto que estou no centro daquela velha ciranda, mas sem gema que se quebre, sem reza que me valha.
Eu sempre fui comunista. Hoje sou neguinha e minhas escolhas, vou largando para trás
*Em parceria com Caroline Brito (entre aspas)


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