segunda-feira, 16 de setembro de 2013

crônica da sema - literatus

Drenus Literatus (a Augusto dos Anjos)
Semana passada quase que não rola a crônica aqui para o Bom Dia. Por dias, me vi de dor com uma nascida (que nasceu) aqui na minha costa. Começou com uma coceirinha, esquentou, avermelhou. Depois, égua-te, Como sofri! A irritação virou uma bifede poderosa que dava uma dor, mas uma dor tão grande que, da costa vinha descendo, se espalhando, chega refletia aqui na frente, em toda esta parte do peito.
Até eu perceber que a coisa tava séria, a bicha já tinha me consumido os ânimos. Aí arriei. Fiquei mofino, mas não fui ao médico, com medo d’ele me alvejar com uma penicilina no glúteo.
Preferi o inofensivo sebo de holanda...
Não deu resultado.
E a pinicação cada vez mais forte. A coisa latejando, ardendo, doendo. Decidi radicalizar e mandei ver na folha de pimenta.
Foi a minha derrota.
A pimenteira me derrubou. Até febre me deu. Aquela febre por dentro, sabe?
No dia seguinte, me recolhi à humildade e mais que depressa, corri, resignado, ao médico.
(Tá bom, tá bom, a sabedoria popular é importante. Os tratamentos caseiros têm o seu valor. Mas nós temos que estar atentos aos sinais. Se a coisa não está dando certo. Temos que ir atrás das melhoras).
Resultado: saí do ar por quatro dias.
Confesso que estava desacostumado com essas erupções (vai longe o tempo das marias-pretas), daí, logo de início, admiti ser aquilo, uma nascida. Nascida é uma definição legal para essas inflamações. Genérica. Descompromissada. Coisa passageira riscada da pele, sem maiores empenhos, com uma ou duas aplicações noturnas de sebo de holanda.
A coisa ganhou outra dimensão quando me disseram tratar-se de um furúnculo. Pô, aí ficou mais sério. Até Marx sofreu de infestações de furúnculo. O filósofo escreveu O Capital todinho se ardendo com os nódulos pustemados. Eu, como não tenho as pretensões de Marx, não escrevi nada. Tomei a decisão revolucionária, porém, de submeter aquele nozinho a uma noite de folha de pimenteira.
Deveria, como Marx, ter recorrido logo à ciência. Se eu tivesse procurado um médico no início, não teria sofrido tanto (não teria passado por tantas sessões de tortura impetradas por incautos amigos que, cegos na certeza de que ‘fazendo assim, ó, espremendo assim, ó’, achavam que logo, logo, dali, sairia um obediente carnegão). Ai, meu Deus, só de lembrar me dói toda esta parte...
Ainda bem que fui atendido por um médico que já conhece o meu limiar de dor (que, aliás, é baixíssimo), um entendedor das sensibilidades do operariado do pólo industrial de Barcarena.
Pelas precisas e serenas mãos do médico, me submeti ao procedimento de drenagem no local. Um momento que, da mesma forma que os outros, poderia ser doloroso, torturante, não fosse o médico, um literato.
Ao mesmo tempo em que manipulava os instrumentos cirúrgicos, no procedimento, o médico provia a cena com inquietantes, mas apropriados versos...
E, resoluto, enquanto concentrado cavucava a minha costa, recitava: “Tome, Dr., esta tesoura e... corte/Minha singularíssima pessoa/Que importa a mim que a bicharia roa/Todo o meu coração depois da morte?!/Ah! Um urubu pousou na minha sorte!/Também, das diatomáceas da lagoa/A criptógama cápsula se esbroa/Ao contrato de bronca destra forte!/Dissolva-se, portanto, minha vida/Igualmente a uma célula caída/Na aberração de um óvulo infecundo/Mas o agregado abstrato das saudades/Fique batendo nas perpétuas grades/Do último verso que eu fizer no mundo!

Uma cena alucinante! Coisa para filme de Coppola.  Naquela hora, sob os versos de Augusto dos Anjos, não senti dor. 

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