sábado, 9 de novembro de 2024

crônica da semana - Ubaldo

 Esqueci o Ubaldo (imperdoável pecado)

Acontece. A gente pode até dar uns descontos: o afogueado da hora, a urgência da informação, a lista farta de ilustres. Entretanto, pelo certo e justo, imperdoável foi esquecer o Ubaldo. Estou me mordendo de penitência desde segunda-feira por causa deste branco no cocuruto.

Pior. É o que me acontece daqui pra’li. Mais pelo fato d’eu ter esta presunção, este calibre metidão de querer dispensar pautas de apoio, lembretes, recursos visuais e na hora de dar o plá, preferir sempre a memória, que nunca foi muito aquela.

E olha que já tomei choques de derrubar mastodontes. Ocorreu num seminário, quando eu fazia Geologia. Era o senhorzinho da minha equipe, a petizada por respeito me deu a apresentação do trabalho. Slides prontos, sequência definida, recomendações e boas sortes. Não dei as horas sequer para as palavras chaves em destaque nas lâminas. Olhar para o Power point iluminado na parede, acho que nem de ladinho. Viajei na mandioca braba. Entrei em transe. Até que ainda podia sair dali respirando. Meu tema era algo comum na minha vida profissional e de estudante. Se referia a algumas estruturas das rochas que manjava de muitas eras. Falhas, fraturas. Na boa. Agora, juro, estrias, nunca tinha ouvido falar. Nem maldei de procurar com a equipe os conceitos e exemplos. Usei meu charme, minha retórica guarda chuva, aquela que abriga tudo, embanana tudo, mistura José com Cazuza. Ao final da tragédia, meu professor me anarquizou ali na frente de uma garotada atônita. Nem tanto pela minha fala atarantada e marcada pela mancada das estrias, mas pelo meu total desprezo pelas dicas que estavam generosas e claras, nos tópicos destacados da apresentação. Chega fiquei mofino. A garotada da minha equipe só não me chamou de santo. Ficamos de mal a morte um tempão.

O que torna e o que deixa é que a idade chega, a Terra gira de lá a cá e eu não aprendo. Participei de uma mesa para falar da produção de crônicas e contos, esta semana, na Feira Literária de Barcarena. Fiz um roteiro bacana, salvei no celular. E, olha só, estava que era uma maravilha. Cortando e arando. Nesses casos, é natural que o mediador, a assistência e até mesmo o escritor, façam gosto de registrar suas influências. Nessa hora, no fogo do entusiasmo, dispensei as dicas do meu arquivo salvo no celular.

É um momento que dou maior valor, prezo falar dos grandes. Os contistas, os canônicos cronistas, a coleção Para Gostar de Ler da Ática, o Sobral, o Chembra, Eneida, Lígia, meu ídolo Veríssimo...

Não poderia jamais ter esquecido o João Ubaldo. Um pecado imperdoável que procuro, ainda que sem fé de êxito, remediar aqui.

Autor de obras consagradas como “Viva o Povo Brasileiro”, “Sargento Getúlio”, “O Sorriso do Lagarto”, João Ubaldo Ribeiro nos cativava aqui no leito familiar, na sua versão mais leve, a crônica. Houve um tempo, em casa, que o livro dele andou de mão em mão, e de vez em quando recebia um elogio no mais legítimo paraensês: “égua, não, pai, parei pro João Ubaldo. Ele é muito doido”. A família adorou. Recordista de mimos foi a crônica que ele conta ter sido barrado num evento em que ele era a atração. “não tenho cara de escritor”, dizia ele. E nem a solenidade, a soberba intelectual, a sisudez monocular de Machado, a compenetração alencarina, como ele mesmo afirmava, sempre que provocado. Era o escritor da bermuda, chinelo e uma encantadora cadência baiana no falar.

Entre os sodreres, é um querido. Na postura despojada e no domínio da ciência mundana das palavras. Acadêmico, imortal, reanimava-se em talento no fio do irrevogável bigode.

Mil perdões. Esta minha mania de querer dar conta das prosas, até as mais aquilatadas, só com meus débeis neurônios, me causou dor e arrependimento sem fim. Jamais deveria ter esquecido o João Ubaldo. Mesmo porque, também não tenho cara nem termos de escritor.

 

 

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