Uma lesma no banheiro (a promessa)
Vivo
a experiência de não mais encontrar uma lesma no banheiro. Não brinco com essas
coisas, mas acredito no poder de satisfazer precisões, tomar tento e
desencadear fatos, buscar caminhos. Tenho minha planilha agora para antever
futuro. Mas antes era no papel de pão ou em sonhos acordado aos embalos de uma
rede no corredor da casa.
Era
sempre no período chuvoso que elas apareciam. Escorregando devagarinho sobre
aquela gosma brilhosa, aquele meio viscoso, de alta tensão superficial que as
permitia rastejar como se voassem. Deixavam rastro lustroso. Marcas de presença
nojentinhas. Eu me dou com corredor. Mas não com lesmas.
De
forma que não é uma ilusão, uma fantasia quando me pego a reviver carreiras
alegres pelo corredor de uma casa em terra firme. Uma alegria sem regras ao me
abalar da sala à porta da cozinha e me largar aos prodígios do quintal. Cajueiros espalhados e minados de frutos
travosinhos, castanholas discretas, ameixas de roxear os beiços. Jacas das
porrudas, abieiro... silêncio.
A
moça do outro lado da cerca desejando caju com sal. Não sou de brincar com
essas coisas, mas era sinal de menino. Tinha um neném naquela barriga. ‘Deu
passo em falso, ninguém num me tira da cabeça’. Outra carreira pelo corredor.
Ia dar na rua...
Atravessava
com mais de mil sem olhar prum lado ou pro outro. Me aninhava ao pé da
mangueira e mirava do outro lado da rua, minha casa. Pensava que sempre fosse
morar daquele jeito. Casa com corredor e banheiro, lesmas no inverno. Cajueiros
no quintal.
Deu
foi do contra. Cuidei de me aviar na promessa com a Santinha.
Não
sou de brincar com essas coisas. A pequena desejou e meses depois pariu uma
menina loirinha. Na casa dela todo mundo comeu abiu. Silêncio. Sumiram.
Nos
encontramos mais tarde, nos trançados da baixada. Quarto/sala/cozinha. Retrete
partilhada com os vizinhos da vila e distante das casas. Tinha que caminhar por
uma ponte mal arranjada para chegar até lá. E levar papel. Banho era na
proteção do encerado e na cuia. Lesma. Mina de lesmas apareciam, aqui, acolá e
não se acanhavam em varar fora da época das chuvas. O piso, as paredes do banheiro
improvisado eram marcadas por aquele traçado viscoso.
A
menina loirinha já estava crescida, folgava pelas pontes. Deu uma hora que na
peraltice se desequilibrou e caiu no alagado. Da janela de casa vi a cena.
Corri para acudir. Engoliu água da vala, teve infecção grave. Outra promessa.
Não
havia quintal, nem prodígios, nem desejos. A vida era uma aventura de
conquistas diárias. Os milagres acontecendo. A criança se recuperou, a família
conseguiu um terreno no Coqueiro, com quintal. Não mais os vi.
A
peleja pra cá pr’essas bandas continuava.
Não
sou de brincar com essas coisas. Mas sentia saudade dos cajueiros, e dos sonhos
acordado aos embalos da rede no corredor. As desabaladas de fora a fora no
corredor eram uma maravilha, atar a rede lá pra dormir, nem tanto. Aos
primeiros movimentos da manhã, era o primeiro a levantar, tirar a rede para
abrir espaço às lidas do dia. Nessa leva, se aprontar, se entalcar e... escola.
Mas... sem comparação com a baixada, onde era tudo mais emboloado. Sem
corredor, era um por cima do outro. De manhãnzinha era um aperreio só para as
precisões e tinha a legião de lesmas.
Penso
nos outubros próximos e em todos eles, meu agradecimento à Santa. Vi a
mobilização popular forçar medidas acanhadas de governo, que com toda a
derrota, drenaram a água de boa parte dos alagados que tínhamos na Pedreira.
Quando
me perguntam sobre os meus agradecimentos à Santa, todo ano, uma resposta justa
me vem de prima. Vivo a graça de não mais encontrar uma lesma no banheiro. E,
de ganho, retomar um corredor que me dá
fantasiar, em desabaladas carreiras de fora a fora da casa, encontros com
pródigos quintais e com a moça desejando caju com sal.