Volta de ônibus
Houve
um tempo em que, eu molequinho bicando a adolescência, dava domingo de
tardezinha, me aprontava, passava um talco, um extrato, alisava o cabelo com um
tiquinho de Gumex, me ajeitava nos panos, nas vontades e saía, com o sol
esfriando, para dar umas boas voltas de ônibus.
Trabalhava,
nessa época, numa taberna na Marquês e o local foi usado durante um bom tempo
como fim da linha do antigo Vileta. Atendia os motoras, cobradores. Sabia dos
gostos deles. Uns encaravam uma merenda pesadona com tudo de direito, já
outros, no término de cada viagem, só davam uma prova no cafezinho, ou num
traçado com leite. Conhecia todos. Tinha 13 pra catorze anos na ocasião, e
agora, gente do céu, no avançar da idade, a memória banca ‘as traição’ e não
recordo os nomes. Um ou outro só, ainda me torna, como o de um motora muito
popular que tinha o apelido de bombonela porque nos intervalos das viagens, nem
lanche farto, nem a frugalidade do cafezinho. Preferia um punhado de bombons
para adoçar a lida. Lembro dele também porque algum tempo depois, já nas minhas
vivências políticas, o encontrei várias vezes atuando como dirigente do
Sindicato dos Rodoviários.
Uma
volta de ônibus no Vileta era um programa comportado para o final de tarde, de
um domingo. O trajeto da linha é conservador. Não ousa. Não explora as
reentrâncias da cidade. Faz um roteiro pelas vias principais dos bairros que
atravessa. Para o domingo era uma diversão bastante austera. Passava o tempo,
mas não encantava. Valia pela minha moral, porque parceirada que era, viajava
sentado no capô, em prosa farta e dispensável com o motorista, não dando a
mínima para a plaquinha fixada bem na nossa frente que recomendava falar com o
motorista somente o indispensável. Nos momentos de menor movimento chegava até
a ocupar a cadeira do cobrador enquanto ele esticava as pernas pelo corredor do
ônibus. Era o máximo de minha soberba.
Eu
era moleque pra frente, meio independente, tinha meu dinheirinho do meu
trabalho de caixeiro. Fazia meus programas de domingo, nas voltas de ônibus até
enjoar, sozinho.
Mas
esta alternativa de lazer, tenho conhecimento, já foi programa de famílias.
Na
Escola Técnica, estudou comigo um pequeno que contava que o pai dele juntava a
petizada, não só no domingo, mas a hora que desse na telha, para dar uma volta
de ônibus. Só que a linha dele era radical. Aquela que encarava as baixadas do
Jurunas, da Pedro Miranda. Em alguns trechos o ônibus forcejava, andava de
lado, enfiava-se em brandos atoleiros. Tinha emoção. E era, verdadeiramente realizado,
o itinerário, como pauta comum de diversão. Havia a formalidade, todos
colocavam roupa de sair. O pai assumia a liderança, pegava o mais novo pela
mão, delegava o cuidado com os outros zinhos aos maiores, definia quem passaria
por baixo da borboleta, quem passaria junto no apertacunha, e quem pagaria a
passagem. Na janela coordenava a vez. Havia revezamento. Menos com ele. Viajava
sempre no corredor, para as crianças terem a oportunidade de apreciar os
movimentos da cidade pela janela. Na chegada, uma rodada de chope de uvita,
groselha, tutifruti, com direito a repitota. Em tudo por tudo era um programa
que ia deixando suas marcas.
E
deixou.
Dia
desses encontrei este amigo. Perguntei pela família. Contou daqueles que ainda
estão na lida e com saúde. Lamentou a perda do pai. Demorou-se um pouco e
revelou, sem conter a emoção, que a lembrança que mais reforçava a figura de
herói, de seu pai, estava naquelas voltas de ônibus.
E
eu mesmo que intuitivamente, mas operando no campo do desconhecimento, naqueles
tempos, pensava que a palavra ‘indispensável’ que estava na plaquinha do
ônibus, queria dizer que só quem podia falar com o motorista era o responsável.
O pai ou a mãe. Hoje pondero que há sinais em tudo.
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