Pai alterna
Meu
pai era do mato. Riscador de seringueira. Comboieiro. Desse jeito se desenrola a
história criada no seio de nossa família para manter viva a imagem, penso que,
oportunamente romanceada, do nosso herói da floresta. Na real, conto essas memórias
como invencionices de selar casos passados e incertos. Conto na conta do faz de
conta. Porque, na vera mesmo, não tenho uma zinha lembrança dele. Tudo que eu
sei de meu pai, tenho consciência disso, faz parte da arte de imaginar. O que
dá lá dentro de mim, uma frustração aquietada, doce. Sem pretensões nem
cobranças rúpteis. Não guardo, é certo, cenas apreciáveis de relações típicas
de pai e filhos. Como tantas que se espalham por aí.
É inspiradora,
por exemplo, aquela rotina de sábado que eu presenciava na Mauriti, quando
moleque, em que um pai, naquele dia, na mesma horinha, atravessava o quarteirão
que eu morava carregando as compras que havia feito na feira, e dentre elas, um
maço robusto de alface sobressaindo-se além das grossas alças da sacola,
ladeado dos filhos. Uma escadinha. O pai na caminhada em direção à Marquês e a
meninada agarradinha. Um segurando no cós da bermuda dele, outro beliscando o
braço ocupado; aquele maiorzinho pajeando a patota, dando a mão pra um, pra
outro e limitando os movimentos da galerinha aos desníveis traiçoeiros das
calçadas. E todos num diálogo atravessado de rua, às vezes em saltitos folgados
ou em pequenas arengas. O pai altivo, ciente, competente nos cuidados com a
turminha. Semblante compenetrado de cidadão responsável, e ao mesmo tempo feliz,
como se compreendesse a razão daquela caminhada, num sábado de manhã, como
razão da própria vida.
Uma
revirada no enredado das lembranças é um pé da gente se atinar para o arremedo,
quando da nossa vez. Não me ocorre ter realizado esta batidinha certa de feira
com as crianças, em sábados sagrados. Por outro lado, elas costumam resgatar umas
quantas varações pelas reentrâncias da cidade. Se puxar uma conversa a dupla
destila logo o irrevogável descontentamento de um périplo que fizemos por toda
a margem do canal da Pirajá, desde a Aldeia Cabana até adiante da ponte do
Galo, já no Telégrafo, debaixo dum sol daqueles. Até hoje justifico
argumentando que, chegados da Vila dos Cabanos, era imprescindível que
conhecessem o perfil sócio-cultural-estrutural-marginal-invisibilizado-arquitetônico-convulsivo
das baixadas. Virei e mexi para me mostrar um pai que dava às crianças, a
possibilidade das experimentações. De forma que pra tudo quanto era biboca em que
eu me metia, as crianças iam comigo. Então elas me reconhecem na música que
escuto, nas confraternizações, nos saraus, no pôr do sol no veropa ou nos
escaninhos da Pedreira. Hoje, quando vejo que a maioria dos meus amigos e
amigas são amigos também da minha patotinha, entendo que a caminhada foi
palmilhada juntos.
Até
que houve a desvira. De repente, já não era eu que levava as crianças para as
partes ou indicava esta ou aquela play list. Jovens antenados, a dupla era que
me inspirava. Passei a acompanhar as crias nos programas delas, houve uma época
que eu era de tal forma carimbado nas programações, que me diferenciava da
rotina de outros pais. Daí, fui rotulado pela petizada de pai alterna. Aquele
que tinha uma conduta alternativa. Uma relação pra lá de liberal com os filhos.
Deu que me empavonei nas cores do decolado.
Aí
veio outra desvira. Não me convidaram mais. Revisitaram aquelas play lists, até
amigos foram selecionados. Com visões mais apuradas, deduziram que sou mesmo é
caretão, conservador.
Vou
organizar uma desvira para suavizar as diferenças da hora, é que é. Comprar uma
sacola, recrutar todo mundo, até a netinha, para fazer a feira comigo no
sábado... Instituir a alface como estrela do fim de semana... cortar uma
seringa.
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