sábado, 11 de novembro de 2023

crônica da semana - meritocracia

 Meritocracia

Como são as coisas... Estava na primeira volta da caminhada, no Bosque, certo na dobra da Perebebuí para a Almirante Barroso, de confronte o sol. Ultrapassei duas senhorinhas e a prosa delas me chamou a atenção. Apontavam para o nascente, especulavam sobre os pontos cardeais, e do meio pro fim, uma delas abriu o coração dizendo, com algum saudosismo, que, ah, adorava aquelas lições. E emendou reconhecendo que se aprendia essas coisas tudinho nas aulas de Geografia, daqueles tempos. A conversa delas foi ficando para trás, me distanciei na direção do sol ainda baixo, ali pelas sete horinhas da manhã, abri os braços e me localizei. O norte é pra’li, pras bandas do Entroncamento.

Geografia foi meu primeiro curso não concluído na UFPA. E o mais rico em protocolos. Logo de prima, tranquei a matrícula. Passei, já quando estava beirando os trinta anos. Era arrimo, o homenzinho da casa e estava na pira do desemprego. Fiz a habilitação, mas adiante, consegui trabalho no Amapá. Rapidola, usei dos protocolos para trancar a matrícula e, ainda de cabeça raspada fresquinha, me mandei pra ganhar um tutuzinho, que estava era nos fazendo falta, lá pros lados do Cupixi. Mais papelada, ressalvas, requerimentos e destranquei a matrícula um ano depois, em 1994. Nem esquentei a cadeira. Quando estava preparando os apontamentos para a primeira avaliação, ganhei mundo de novo. Novo trampo, dessa vez em Barcarena. Marcou o curso de Geografia, a minha passagem mais rápida por um curso superior. Bateu na biqueira de um semestre. Mais dez anos e ingressaria novamente na Federal para fazer seis semestres em Geologia. Nova desistência, mas durou mais. Deu até uma gordurinha ao meu SIGAA.

Foi pouco tempo na Geografia, no entanto, marcante. Naquela oportunidade, tirei a prova dos nove do que é, na vera, um curso superior nas aulas concorridíssimas do professor Juan Hoyos, onde nos encantávamos com a oratória dele e os detalhes que divulgava sobre a esperança de reservas científicas na Amazônia; me vi abismadíssimo em exercícios semânticos e a descoberta da sílaba pretônica, com o professor Pedrinho de Português; quedei-me entusiasmado às aulas ao ar livre ministradas pelo Giovani e também com o discurso substancioso do Nailson sobre a Epistemologia da Geografia, abrigado em uma concentração extraordinária, imerso naquele transe intelectual, mesmo que desconfortavelmente acomodado, porque ele era grandalhão para aquela cadeirinha do professor, ao canto da sala.

Abandonei a Geografia sem adeus. Num dia sustentava atraentes prosas epistemológicas com meus colegas, no corredor do pavilhão... D? E? Não lembro mais. E n’outro estava com tralhas e bagagens atravessando a baía para iniciar minha jornada como peão de fábrica. Nem deu tempo de articular os protocolos. Fui jubilado à revelia, imagino.

A Geologia, em 2004, veio como a realização de um sonho que se repetia há anos. Sou ainda um apaixonado por esta ciência audaciosa, destemida. O sono me tirou o ânimo, me tirou da sala de aula, dos laboratórios, das folgas com minha turminha, conhecendo as mais novas combinações gustativas do jambu, em experimentos que se assemelhavam às vivências dos naturalistas- raiz do século 19.  Meus méritos se diluíram no sono e no cansaço. Em jornada de turno, ficava até 36 horas sem dormir, para poder trabalhar e estudar. Com as crianças pequenas, desobrigas domésticas e ainda um pouco de arte, não aguentei. Também foi sem protocolo.

A ilusão da meritocracia, aqui, ali, me derrubou. Às vezes com, outras, sem protocolo. E acho que caí mesmo foi naquele inverno amazônico de 1975, em que completara 12 anos, assinava minha carteira profissional pela primeira vez, batalhava como empacotar de supermercado e pirangava uma gorjeta dos barões com seus carrinhos cheios de compras.

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