sábado, 4 de novembro de 2023

crônica da semana - entrevista euclides

 Entrevista

Na horinha que sintonizei o canal, a entrevista já ia longe. Não identifiquei de prima o convidado, mas pela caracterização com bigode fino e dobrado nas pontas, traje elegante; e também pelo tema tratado no instante em que me liguei na entrevista, que revelava detalhes da carreira militar, pensei ser o Marechal Rondon. Só atinei para quem era, na certa, quando em uma das respostas, ele registrou o momento da vida em que conheceu Ana. Era Euclides da Cunha, o personagem entrevistado pelo jornalista Paulo Markun no programa daquela noite.

O programa é uma montagem em que atores representam figuras de destaque na história. E tão bem bolado, que a gente pensa que o Paulo Markun está, verdadeiramente de confronte com o protagonista histórico. Peguei certinho o dia de Euclides da Cunha. Escritor que se destacou narrando a Guerra de Canudos.

Observa-se no programa, o perfeito alinhamento entre o real Paulo Markun e o imaginário personagem histórico, pois que a conversa se dá em detalhes, ou daquele modo em que um assunto puxa outro e entrevistador e entrevistado, para dar o clima, têm que sem virar em espontaneidade. Tudo muito bem alinhavado.

De tal forma que presença viva do autor de Os Sertões, ali, na telinha, renovou em mim o juízo que faço da obra. Já deixei passar aqui, em outra ocasião que, quando aluno temporão de Geologia, provocava meus coleguinhas bem mais jovens vaticinando que não seriam bons geólogos se não lessem Os Sertões. Imagino como essa dica caía na cabeça daqueles estudantes envolvidos, com inarredável exclusividade, nos textos clássicos das Geociências, produções acadêmicas respeitáveis, referências darwinistas, proposições naturalistas, pautas do conhecimento científico. E, ora, ora, tendo como incitador, um colega de classe, já passado na casca do alho, jurando de pé junto que a obra literária iria agregar valor à profissão. Penso do mesmo jeito, ainda hoje. Inspirado por Euclides, o profissional que estuda a Terra é levado a colocar o homem, com seus anseios, suas cobiças, seus medos, prazeres e ilusões, no meio dos fenômenos naturais. A Terra tem várias camadas. E elas se integram, se destroem, se constroem. Desenham uma sina, um destino, onde todo futuro possível é sempre resultante de um acontecimento, uma revolução, uma catástrofe, uma euforia, uma constatação. Em tudo por tudo movimentos atados aos termos de uma combina com o ambiente.

É pegar o livro, e dar de encontro com surpresas. Não é tempo gasto, para um geólogo, conhecer as primeiras páginas de Os sertões. O leitor comum, sim, até por ali, em um terço da obra fica meio embananado com tantas palavras difíceis. No início da narrativa, Euclides detalha o espaço ocupado pelo nordestinho, oferecendo vastas informações sobre a Geologia, o clima, a Geografia, a Geomorfologia da região. Até chegar ao front, o autor se empenha nas conjugações de eventos naturais que resultaram na Guerra de Canudos.

Na linha de frente, nos mostra a guerra como ela é. Monstruosa, desleal, sem medidas, desprovida de traços mínimos de humanidade. Como as guerras atuais, Canudos reflete o que se sabe hoje sobre os massacres registrados em combates. Flagelos, estupros, humilhações, barbáries. Acontecia lá em Canudos. Acontece a qualquer tempo, do mesmo jeito. De forma bruta. Destruidora de corpos e almas.

Somente o talento de Euclides nos alivia a dor impressa nas páginas de Os Sertões. Ele é esmerado na escrita, tem estilo, é fiel às construções, às locuções. Pratica a língua com preciosismo. Valoriza as formalidades frasais. Reverencia a colocação pronominal. Quando cinco mil soldados rugem ante quatro sobreviventes de Canudos, o que nos atenua o horror é a arquitetura da narrativa. Arte tal que nos deixa levar pela sensação lenitiva de que a Geologia e a ênclise, ainda que, contraditoriamente, na erudição segregacionista da forma, nos redimem.

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