Entrevista
Na
horinha que sintonizei o canal, a entrevista já ia longe. Não identifiquei de
prima o convidado, mas pela caracterização com bigode fino e dobrado nas
pontas, traje elegante; e também pelo tema tratado no instante em que me liguei
na entrevista, que revelava detalhes da carreira militar, pensei ser o Marechal
Rondon. Só atinei para quem era, na certa, quando em uma das respostas, ele
registrou o momento da vida em que conheceu Ana. Era Euclides da Cunha, o
personagem entrevistado pelo jornalista Paulo Markun no programa daquela noite.
O
programa é uma montagem em que atores representam figuras de destaque na
história. E tão bem bolado, que a gente pensa que o Paulo Markun está,
verdadeiramente de confronte com o protagonista histórico. Peguei certinho o
dia de Euclides da Cunha. Escritor que se destacou narrando a Guerra de Canudos.
Observa-se
no programa, o perfeito alinhamento entre o real Paulo Markun e o imaginário
personagem histórico, pois que a conversa se dá em detalhes, ou daquele modo em
que um assunto puxa outro e entrevistador e entrevistado, para dar o clima, têm
que sem virar em espontaneidade. Tudo muito bem alinhavado.
De
tal forma que presença viva do autor de Os Sertões, ali, na telinha, renovou em
mim o juízo que faço da obra. Já deixei passar aqui, em outra ocasião que,
quando aluno temporão de Geologia, provocava meus coleguinhas bem mais jovens
vaticinando que não seriam bons geólogos se não lessem Os Sertões. Imagino como
essa dica caía na cabeça daqueles estudantes envolvidos, com inarredável
exclusividade, nos textos clássicos das Geociências, produções acadêmicas
respeitáveis, referências darwinistas, proposições naturalistas, pautas do
conhecimento científico. E, ora, ora, tendo como incitador, um colega de
classe, já passado na casca do alho, jurando de pé junto que a obra literária
iria agregar valor à profissão. Penso do mesmo jeito, ainda hoje. Inspirado por
Euclides, o profissional que estuda a Terra é levado a colocar o homem, com
seus anseios, suas cobiças, seus medos, prazeres e ilusões, no meio dos
fenômenos naturais. A Terra tem várias camadas. E elas se integram, se destroem,
se constroem. Desenham uma sina, um destino, onde todo futuro possível é sempre
resultante de um acontecimento, uma revolução, uma catástrofe, uma euforia, uma
constatação. Em tudo por tudo movimentos atados aos termos de uma combina com o
ambiente.
É
pegar o livro, e dar de encontro com surpresas. Não é tempo gasto, para um
geólogo, conhecer as primeiras páginas de Os sertões. O leitor comum, sim, até por
ali, em um terço da obra fica meio embananado com tantas palavras difíceis. No início
da narrativa, Euclides detalha o espaço ocupado pelo nordestinho, oferecendo
vastas informações sobre a Geologia, o clima, a Geografia, a Geomorfologia da
região. Até chegar ao front, o autor se empenha nas conjugações de eventos naturais
que resultaram na Guerra de Canudos.
Na
linha de frente, nos mostra a guerra como ela é. Monstruosa, desleal, sem
medidas, desprovida de traços mínimos de humanidade. Como as guerras atuais, Canudos
reflete o que se sabe hoje sobre os massacres registrados em combates.
Flagelos, estupros, humilhações, barbáries. Acontecia lá em Canudos. Acontece a
qualquer tempo, do mesmo jeito. De forma bruta. Destruidora de corpos e almas.
Somente
o talento de Euclides nos alivia a dor impressa nas páginas de Os Sertões. Ele
é esmerado na escrita, tem estilo, é fiel às construções, às locuções. Pratica
a língua com preciosismo. Valoriza as formalidades frasais. Reverencia a
colocação pronominal. Quando cinco mil soldados rugem ante quatro sobreviventes
de Canudos, o que nos atenua o horror é a arquitetura da narrativa. Arte tal
que nos deixa levar pela sensação lenitiva de que a Geologia e a ênclise, ainda
que, contraditoriamente, na erudição segregacionista da forma, nos redimem.
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