A chuva da Santa
Antigamente,
antes dessa doideira climática que nós humanos ensejamos em termos e rumos
perigosos, as chuvas do ano eram marcadas por referências bastante
reconhecíveis e previsíveis. Eu sou do tempo da chuva da Santa, e ela vinha exatamente
como agora, depois desta secura do mês de agosto e pouca indicação de chuviscos
em setembro. Era batata. Batia outubro e ela começava a se assanhar. Podia até
não cair, mas se assanhava até que no sábado ou domingo do Círio, arriava. Os
dias absurdamente quentes deste ano, a falta de ensaio e os alertas de ondas de
calor me fizeram crer que passaríamos batido na chuva da Santa dessa vez. Mas
quando, homem de pouca fé! Para a Santa não tem dificuldade que não seja
superada. Quando estava na Presidente Vargas, sábado, benzinho na chegada da romaria
fluvial, alertei a família para uma nuvem se formando em cima de nós. Tínhamos
a netinha como a mais nova integrante da nossa patota, na recepção à Santa e
uma correria ali pra proteger a pequenina, naquele instante por causa de uma
chuva repentina nos deixaria num sufoco. E agora a gripe certa, depois por
causa do mormaço! Rapidola fizemos um plano de dispersão. Só que a nuvem fez
menção, fez que despencava, mas não despencou, foi-se com o vento. Agora, no
domingo, depois da procissão, o pampeiro deu o desconto e arriou valendo! Bem
na hora em que nos aviamos no almoço, acolhidos pela sombra generosa do
quintal. Foi um corre-corre pra livrar a terrina do pato, a panela da maniçoba,
a bandejinha com salada, da chuvarada que não tinha termo e nem direção. Foi,
porém, o custo de tudo de arranjar para folgarmos a valer. Nos divertimos
segurando a tenda armada no quintal para que o vento não a levasse pra longe,
manejamos rodos e vassouras esgotando aqui, ali uma sensação de alagamento dos
pés; a molecada piriricou nas biqueiras e em regozijo, apreciamos a reedição de
um evento cultural e religiosamente íntimo de todos nós paraenses: as bênçãos
da mãezinha vindas do céu, nos mostrando que mesmo que a gente tenha maltratado
o planeta e que o tempo dê suas destrambelhadas, ainda há uma chance. Ainda
podemos mudar o curso da história, recuperar um pouco do prejuízo ambiental,
represar as ameaças e garantir por mais uns bons anos, um Círio molhado. Ninguém
cria que ia chover nesse fim de semana. Choveu e choveu bem. Não foi milagre,
foi conformidade. Está escrito na história dos Círios, descrito nas
estatísticas e memórias, que uma horinha, ao tempo e à vez, chove. Sabemos
disso. Reconhecemos e nos entregamos de gosto à chuva da Santa com fé,
satisfação e aquela algazarra boa que se instala sem travas nessa hora. Sem
nenhuma barreira de recato ou pavulagem. Me meti foi com beira também naquela
desordem redentora.
Estava
precisando desopilar. A semana que antecedeu o Círio foi brabíssima. Daquelas
chumbadas de três esferas que pesam dentro da gente e nos levam pro fundo. Bem
aos olhos da Santa! Difícil pra mim conviver com a brutalidade, a insensatez. A
alienação do que nos faz iguais. O distanciamento da propriedade que nos torna
fruto da mesma árvore: o trabalho, a batalha diária. Me abalam posições,
reações que nos põem, nós os peões, em desalinho. Choro, me recolho nos
escaninhos da revolta. Chega me dá até um tremor, uma febre. A minha valência é
poder partilhar. Tenho uma rede segura, afetuosa de amizades que me aparam. Meu
ouvem, me entendem, enxugam minhas lágrimas, se colocam ao meu lado. Foi essa energia
que me lançou à rua no sábado para o encontro certo com a Santinha, na chegada
da fluvial; e o que me reintegrou ao seio reconfortante da minha família. Círio
para mim, entre tantas e às vezes desajustadas interpretações, é família.
Esta
mesma que me estimulou a lavar a alma com as benditas águas da chuva da Santa
no domingo.
De fatos cotidianos e linguagem leve se faz o grande cronista. Salve
ResponderExcluirobrigado pela atenção.
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