O sul é ali
Meu
olhar se perde no longe. A vista alcança a dúvida, a indiferença, divisa o
infinito instável e a descrença. Num revide, brotam de mim palavras silenciosas
devoradoras de medos, chamando por uma força suprema, um deus que venha do céu,
ou ao menos uma alma boa que se aproxime com afetos e doçuras. Há uma paixão
latente nesta minha zanga. Uma novela de desejos, tentações, traições passando
pela minha janela espiã e indo se despir no igarapé lá embaixo, aos pés da
imensa castanheira. O sul é ali. Um ponto cardeal. Não, cardeal não. Cordial.
Aquele ponto que se instala no hemisfério esquerdo do peito e bate
descompassado a cada fantasia, em oportunas invenções de carinho, nos incidentes
de mãos dadas, abraços escondidos, aquecidos. É um lugar que vai além dos vãos
do universo e dos instintos siderais. Só existe numa caixinha lacrada de idealizações.
Já o outro sul cardeal é do lado oposto ao norte. E ficava bem ali adiante no
rumo do igarapé e da grande castanheira.
Fazia
um trocadilho quando Sueli passava, de braços com o japonês, companheiro dela.
Moravam na vila, depois da ponte. Apontava para o caminho dizendo pra mim
mesmo, no protegido da janela telada, como se dissesse para ela ‘ei, Sueli, o
sul é ali’. Aquela intimidade ocorria só no meu pensamento. Sueli tinha uma
vida recatada, de poucos alardes. Saía raramente de casa e quando saía, era com
o japonês. Nos encontrávamos mais de perto, à tardinha, no jogo de vôlei.
Durante as partidas, se soltava um pouco. Vibrava, reclamava se errava uma
jogada, abria sorrisos absolutamente mundiadores quando fazia ponto. Sacava com
elegância, embora nem dominasse as técnicas. Bastava sustentar a bola no ar que
para ela a jornada da tarde já estava ganha. Criei uma afeição contida. Todas
as tardes, reparava nela. Era jovem e tinha uma beleza reprimida. Se cuidava
pouco. Não tinha vaidade. Na quadra arriscava um pitó para prender o cabelo e
este arranjo lhe dava um aspecto juvenil, inocente. Nem parecia que já era
casada. Com o japonês.
O
sul é ali e o trocadilho me vem com uma sonoridade perturbadora. Inspirando
aquelas inquietações no lado esquerdo do peito. Meu ponto cordial se deixa
levar pelos ventos sem rumo certo. O igarapé, a castanheira, um olá respeitoso
para o casal da minha janela e as convulsões, os respondidos explodindo dentro
de mim. Meu esconderijo telado, a realidade turva pela poeira; e toda aquela
revelação verbal comprimida, apertada dentro da razão, volta-se para o céu em clamores,
culpas, perdões. Chama por uma energia compensadora, uma prenda pós-morte, um
paraíso de prazeres sublimados. São as revoluções provocadas pela paixão.
Dominam meu ser em pensamentos e intenções. Prazerosos pecados. Delitos
deliciosos. Conflitos excitantes, Medos delirantes. Felicidades em risco. A
paixão clandestina, silenciosa, perigosa, insidiosa, Indicando a direção. O sul
é ali.
De
minha boca, as angústias explodem em palavrões pedindo céus e nuvens e chuva e
Deus e força e choro farto e resignação e um amor só meu e a vergonha social e
o flagelo da clausura e uma demência estratégica e... silenciam.
Até
que um dia, me chegou notícia contando que Sueli havia fugido de casa. Sem que
ninguém maldasse, sem nenhuma pista na quadra de vôlei que insinuasse. Pegou o
circular cedo, antes do japonês chegar do turno da noite. E sumiu no mundo. Levou
a beleza pura, sem enfeites, o pitó juvenil e aquele sorriso avassalador de
quando fazia um ponto, sem técnica, quase sem querer, no jogo. Nunca mais se
ouviu falar dela.
Dali
a alguns dias, o caminhão passou pela minha janela levando as coisas do japonês.
Estávamos sem rumo. Sem pontos cordiais a bater no coração.
Nunca
mais se ouviu falar dela. A não ser agora, quando olho pro horizonte e a
localizo... ali, no sul.
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