O feldspato e o tremelique nas razões
Escrever
no dia seguinte à jornada intensa da Feira Pan-Amazônica do Livro e das Multivozes
tem a medida exata e ainda fresquinha dos atropelos comuns aos instantes
incomuns. É que hoje, a minha carruagem virou abóbora. Todo o fulgor, aquela
convulsão, as imersões em descobertas, o papo cabeça vão se apagando a uma
velocidade da luz sem luz e dão lugar à rotina operária, à tensão produtiva, ao
labor inclemente e duro, ao humor contido, ao amanhecer sedento de ânimo e de
energia. A atmosfera literária, intelectual, abstrata e agradavelmente
despressurizada, dá lugar à concreta valia, ao relógio de ponto, à rigidez implacável
da produtividade. O dia seguinte à Feira Pan, requer a mudança de
personalidade, o desapego de adornos e discursos, a reviravolta no ser e estar.
Faz a exigência de um outro eu a me dominar. Mas já foi de muito mais impacto
esta viração de casaca. Já ocorreu o tremelique das razões. O choque já foi de
volts tantos de não se medir. De me deixar meio atarantado, por um isso assim
em tempo de errar a letra e a fala. Hoje sai de cena o escritor e volta ao
comum dos dias, o operário. Abandona-se o autógrafo em favor do carimbo. Deixo
o limbo leve das palavras e me lanço ao chão frio e bruto (ao mesmo tempo,
sagrado provedor de cumê e algum prazer), do chão da fábrica. Num sacolejo de
entontecer os pensamentos. Digo até que agora, é destrambelho fácil de se
arrumar sem grandes contorcionismos de conduta. Mas há alguns anos, a liga era
mais intensa. Ainda tinha o feldspato...
Foi
no tempo em que eu era aluno temporão do curso de Geologia, trabalhava de
turno, tinha duas crianças pequenas pra cuidar e ainda traçava estas heróicas
linhas a hora do dia que desse. Era quatro em um. Vivia várias personalidades
numa velocidade alucinante e que ganhava relevo nesta mais espetacular
sequência: saía de Barcarena ainda com a estrelas pinicando no céu. Enfrentava
a travessia e rezava a todos os santos pra chegar e pegar ainda o final da
primeira aula na Federal. Nessa época, fazia uma disciplina ligada a
Mineralogia e a estrela da vez era o feldspato, um mineral que até a
Universidade nem maldava que tinha tanto valor científico. O bichinho na vera
era o astro naquele período. Tomou todo o semestre. Adentrei naquele mundo
miudinho e que contava com a tecnologia das lâminas de vidro, do microscópio,
requeria umas apreensões de ótica, das revelações da luz polarizada. Era uma
disciplina que eu considerava engalanada, empoada nos poderes acadêmicos. Ali,
sentado, decifrando a história do feldspato no microscópio eu me via como um
ser superior, dominador das ciências. Até que batia a campa, eu saía correndo,
me despindo pelo caminho dos rigores científicos, atravessava a baía meio-dia e
pegava o turno da fábrica já abraçado ao cabo de uma pá, ao comando de uma
máquina, ou à assepsia do ambiente de trabalho. Do cientista, nem lembrança. Depois
de bater o ponto, casa. As crianças dormindo (raramente dava pra exercer a
versão pai). No outro dia, de novo Federal e de novo trampo de peão. Virava a
escala e ia para o turno da madrugada. Federal durante a manhã. Tentava ser pai
de tarde, e à noite cumpria minhas oito horas na lida. Entre uma jornada
noturna e outra, sem dormir um tico, aparecia o escritor. Nem tinha computador
nessa época. Era tudo na minha Olivetti. Um pouquinho de pai de novo e tirava
uns dias de folga. Enquanto descansava do trabalho, carregava as ‘pedras’ de
feldspato, me aviava como pai e buscava inspiração para um verso, uma prosa.
Era quatro em um. Mas não aguentei não. Abandonei o feldspato, adaptei outros
eus e busquei dias mais brandos, mas de forma alguma distendidos ou levianos.
Muito pelo contrário. Densos, ainda densos, como estes de adaptação, ao pós
Feira Pan.
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