No Acre faz frio
Bem
a calhar os últimos vagares dos dias. Esses instantes de conversas frouxas,
leves, de mesa de bar; de tiradas espontâneas pra preencher o tempo ou dar liga
para dedicar um raminho meu às saudáveis relações sociais. Foi na prorrogação da
sessão de autógrafos do meu livro, sábado próximo passado, quando uma turma
animada quedou-se aos saberes muitos e prazeres tantos de uma cerveja bem geladinha,
ali pelas penumbras da 25. Ainda no pique, com energia (e sede) pra completar a
festa de lançamento do Igarapé Piscina, meu oitavo livro. Conversa vai,
conversa vem, e como o Acre integra um dos tópicos das minhas narrativas,
alguém me perguntou se eu tinha morado mesmo, de verdade, em todos os lugares
que cito no livro. ‘Até no Acre?’ Acrescentou, com curiosidade inquieta, uma
voz feminina ao extremo da mesa.
Eu
mesmo me espantei com a resposta. Não. Ao contrário dos lugares que pautam a
minha saga Amazônica, no Acre, nunca morei não. Sou nascido, não criado e em
circunstância nenhuma, domiciliado. O que é uma pena. Gostaria. E penso até que
por não ter vivido naquelas terras, de forma compensatória, o lugar anima a
minha criação.
Exatamente
porque tenho poucas experiências vividas na vera, é que muito do que escrevo
sobre o Acre é invencionice, entra na conta da minha lavra ficcional. Houve um
tempo que eu dizia ser o Acre a minha Macondo, forçando, sem que minha cara
tremesse, uma incabível comparação com a cidade fantástica criada por García
Márquez no romance “Cem anos de Solidão”. Com todos os perdões do consagrado
escritor colombiano, até acho justa a minha apropriação do nome da cidade. No
contexto e no frigir dos ovos, entendo ter um sentido. Se a gente for pros lados
da ilusão, da fantasia, da literatura pautada no absurdo dos fatos, é que nem:
A história de uma chuva de peixe que eu reconstitui nos escondidos do seringal
São Miguel, a partir dos relatos da minha avó e, por outra, o risco luminoso de
um tiro, rasgando o céu, disparado das margens do rio Ina, saído de um 22 com cano
serrado, e indo atingir São Jorge Guerreiro na plena lua cheia, são causos que
saíram da minha pena e migraram para o imaginário alheio como verdades inquestionáveis.
Deixa
estar que, por outras e pavimentadas vias, o imaginário alheio se deixa ir
também. Na mesma conversa de bar, logo surgiram as impressões imprecisas sobre
o Acre. A existência do Acre como federado da nação foi logo colocada em
destaque. Asseguro. O Acre existe sim como unidade federativa deste imenso
Brasil. Ouros termos sobem à tona misturando alhos e bugalhos. Fuso horário é
menos? Chico Mendes e Marina Silva são como siameses ambientalistas à luz do
dito comum; e o garoto que desapareceu por cinco meses e que tinha umas
pinturas esquisitas tomando todas as paredes do quarto reforça aquelas
tendências aos mistérios.
O
crível e certo é que o Acre se alinha a um contexto cruel de um país desigual.
Geograficamente apartado, socialmente discriminado, ambientalmente atacado. Sazonalmente
árido. O Acre se apruma como uma entidade física, administrativa, real. Com
seus encantos, sua revolução e sua brasilidade. Estamos na luta nós, os
exilados e outros tantos nativos a buscar rumos neste mundo de disputas.
A
mim, nos causos, me apraz idealizar um Acre, um pai, minha vó Raimunda, meu vô
Firmino, o chá da miração, a seiva rica escorrendo do pé de pau, os cachorros
rompe-ferro e rompe-mato, as lavadeiras no baixo dos barrancos chapinhando nas
águas rasas, minha mãe lançando olhares esperançosos para o horizonte comigo no
colo... Porque deles sou tão vazio como os vagares dos dias.
Ah,
não fui residente, tampouco domiciliado no Acre, mas sei que lá faz frio. E também
que uma viagem de avião de Belém para Rio Branco demanda um dia inteiro. Demora
que só.
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