Castão e o meu caderninho
Ferreirão
foi cozinheiro da minha república, nos meus primeiros anos em Rondônia.
Faroleiro que só ele. Contava cada uma mais cabeluda que a outra. Desenvolveu,
certa ver, a narrativa de uma história que consumiu umas duas noitadas regadas
a muitas latinhas (ainda revestidas com liga de estanho, aquelas, difíceis de
amassar), de cervejas. Exigiu de mim muita atenção e desprendimento para
aceitar a afirmação que ele fez ao final. Era uma história em que ele morria no
fim.
Eu,
heim, fiquei meio bambo do toutiço com este negócio de conviver com um
ressuscitado.
Pela
regra do bom português, Ferreirão era um homenzarrão. Um amazônida bem no
aumentativo. Porrudo. Muito forte. Era dos ermos. Contava aventuras de garimpos
e sertões longes, beirando a calha do Amazonas. Orgulhava-se de ser um dos mais
resistentes mergulhadores do garimpo que se realizava no Madeira. Nem lembro
tanto, é certo porém, que certa vez, num balneário próximo, ele demonstrou sua
capacidade de mergulho em apneia. Sei que ficou um tempão embaixo d’água. Tempo
até além da nossa compreensão. A gente só via a borbulhinha subindo e ele lá no
quieto do fundo do igarapé. Impressionante!
Se
eu atentasse para um caderninho em mãos, à época do Ferreirão, ou mesmo nos
dias aqueles outros que se seguiram até hoje, teria mina de causos na bagagem.
Negócio é que não tenho este costume. Não tenho a disciplina do apurador-coletor,
do perscrutador dos desvãos assim assados dos instantes.
Deixa
que me rendeu, a convivência. Não saí zerado daquele encontro. Numa das nossas
sessões ao final da tarde, bebericando uma cervejinha (porque naqueles ermos rondonienses
se bebia que só) Ferreirão nas suas invencionices, me trouxe uma aventura
passada entre Letícia e Pucalpa, na fronteira do Brasil com o Peru, em que ele
se envolveu em cerimoniais indígenas e, animado, jogou luz ao farto consumo do
chá de Mariri. Segundo ele, viajou por mundos encantados e coloridos a cada
virada de copo. Anos mais tarde eu reproduziria esta cerimônia em uma cena
determinante do meu conto ‘A Filha do Holandês’, uma saga amazônica que ganhou
até prêmio. Destaco que, um conto baseado em um dos componentes da Ayahuasca, foi a produção que me
deu o primeiro dinheiro vindo dos meus escritinhos. Fiquei metidão pacas com
esse prêmio.
Além
de cozinhar, farolear e desvelar segredos psicodélicos vivenciados, Ferreirão
arriscava uns versos e compunha canções de cabeça. Sem apoio de instrumento algum.
O tema era sempre amor, a lida garimpeira, a solidão na selva, o sonho de ficar
rico e encastoar uma pepita de ouro bem grande no cabo niquelado do canivete
que carregava consigo.
Na
minha ignorância (ou de par com minha empáfia urbana conservadora), entendia
algumas menções de Ferreirão como criações próprias, palavras que ele forjava
na vida e até mesmo como resultado da troca de gírias e termos mundanos com
nativos da fronteira que falavam outras línguas. Eu não acreditava em um sonho
que se compusesse do verbo ‘encastoar’. Para mim, este verbo era mais uma
subversão lingüística do Ferreirão.
Desacreditei
das prosas do homenzarrão, até que a tela de cinema me revelou o certo das
coisas. Dei com o Robert De Niro, em “Coração Satânico” amparado numa bengala
e, no extremo da bengala, um cabo bem trabalhado e uma pedra cravada na
superfície polida e poderosa. Era uma pedra encastoada. Segundo o dicionário,
encastoar significa introduzir castão que por sua vez diz-se de um ornamento
que se usa em empunhadora.
Eu
era um ouvinte descrente, digo até presunçoso e bestão. Ferreirão, sim, sonhava
alto, e sabia das coisas.
Como
prenda, me livrei das certezas vãs e fiz um poema, esta semana, com o verbo
‘encastoar’. Qualquer hora, mostro aqui.
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