sábado, 19 de agosto de 2023

crônica da semana - castão e meu caderninho

 Castão e o meu caderninho

Ferreirão foi cozinheiro da minha república, nos meus primeiros anos em Rondônia. Faroleiro que só ele. Contava cada uma mais cabeluda que a outra. Desenvolveu, certa ver, a narrativa de uma história que consumiu umas duas noitadas regadas a muitas latinhas (ainda revestidas com liga de estanho, aquelas, difíceis de amassar), de cervejas. Exigiu de mim muita atenção e desprendimento para aceitar a afirmação que ele fez ao final. Era uma história em que ele morria no fim.

Eu, heim, fiquei meio bambo do toutiço com este negócio de conviver com um ressuscitado.

Pela regra do bom português, Ferreirão era um homenzarrão. Um amazônida bem no aumentativo. Porrudo. Muito forte. Era dos ermos. Contava aventuras de garimpos e sertões longes, beirando a calha do Amazonas. Orgulhava-se de ser um dos mais resistentes mergulhadores do garimpo que se realizava no Madeira. Nem lembro tanto, é certo porém, que certa vez, num balneário próximo, ele demonstrou sua capacidade de mergulho em apneia. Sei que ficou um tempão embaixo d’água. Tempo até além da nossa compreensão. A gente só via a borbulhinha subindo e ele lá no quieto do fundo do igarapé. Impressionante!

Se eu atentasse para um caderninho em mãos, à época do Ferreirão, ou mesmo nos dias aqueles outros que se seguiram até hoje, teria mina de causos na bagagem. Negócio é que não tenho este costume. Não tenho a disciplina do apurador-coletor, do perscrutador dos desvãos assim assados dos instantes.

Deixa que me rendeu, a convivência. Não saí zerado daquele encontro. Numa das nossas sessões ao final da tarde, bebericando uma cervejinha (porque naqueles ermos rondonienses se bebia que só) Ferreirão nas suas invencionices, me trouxe uma aventura passada entre Letícia e Pucalpa, na fronteira do Brasil com o Peru, em que ele se envolveu em cerimoniais indígenas e, animado, jogou luz ao farto consumo do chá de Mariri. Segundo ele, viajou por mundos encantados e coloridos a cada virada de copo. Anos mais tarde eu reproduziria esta cerimônia em uma cena determinante do meu conto ‘A Filha do Holandês’, uma saga amazônica que ganhou até prêmio. Destaco que, um conto baseado em um dos componentes da Ayahuasca, foi a produção que me deu o primeiro dinheiro vindo dos meus escritinhos. Fiquei metidão pacas com esse prêmio.

Além de cozinhar, farolear e desvelar segredos psicodélicos vivenciados, Ferreirão arriscava uns versos e compunha canções de cabeça. Sem apoio de instrumento algum. O tema era sempre amor, a lida garimpeira, a solidão na selva, o sonho de ficar rico e encastoar uma pepita de ouro bem grande no cabo niquelado do canivete que carregava consigo.

Na minha ignorância (ou de par com minha empáfia urbana conservadora), entendia algumas menções de Ferreirão como criações próprias, palavras que ele forjava na vida e até mesmo como resultado da troca de gírias e termos mundanos com nativos da fronteira que falavam outras línguas. Eu não acreditava em um sonho que se compusesse do verbo ‘encastoar’. Para mim, este verbo era mais uma subversão lingüística do Ferreirão.

Desacreditei das prosas do homenzarrão, até que a tela de cinema me revelou o certo das coisas. Dei com o Robert De Niro, em “Coração Satânico” amparado numa bengala e, no extremo da bengala, um cabo bem trabalhado e uma pedra cravada na superfície polida e poderosa. Era uma pedra encastoada. Segundo o dicionário, encastoar significa introduzir castão que por sua vez diz-se de um ornamento que se usa em empunhadora.

Eu era um ouvinte descrente, digo até presunçoso e bestão. Ferreirão, sim, sonhava alto, e sabia das coisas.

Como prenda, me livrei das certezas vãs e fiz um poema, esta semana, com o verbo ‘encastoar’. Qualquer hora, mostro aqui.

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