Quem sabe...
A
hora é aquela de tardinha, quando o sol se põe e o mundo entra num estado de
luz que a gente não define bem se ainda é dia, ou se já é noite. O que se
percebe é uma inquietação no quieto do momento. Vento tinindo de arreliado
chegando à janela e invadindo a casa na maior e muito bem vinda sem-cerimonice.
Um arranjo de cores pintando o horizonte em pinceladas arrojadas, cheias de
contrates, inclusive com o escuro próximo da noite. Um céu doce-acre,
leve-denso, frio-cálido. Intenso e sereno. Aqui, acolá, um relampejo.
Penso
que este contorno do final da tarde tenha definido versos. Haja tencionado e
inspirado. Quem sabe isso quer dizer amor...
A
imensidão do tempo, das cores, do fervor climático, do humor dos mortais em
poucos minutos. O tanto de um clarão no infinito ou de uma matiz indefinida na
conjugação de cores. É um isso de ilusão, um nada de fantasia, um trisca de
genialidade pra este encanto todo virar música.
É
desse jeitinho que defino a fertilidade musical de Milton Nascimento: baseado
na canção “Quem sabe isso quer dizer amor”. Poderia vir de outras músicas a
minha submissão benfazeja de espírito. São inúmeras e cada uma mais cintilante
que a outra. Tenho, é certo, um chamego com esta. Quem sabe... porque fez a
trilha de todos os saraus de realizamos lá na Pirajá, ou até porque me
acalentou na batente da casa em que eu morava lá na Vila dos Cabanos, em noite
família, quando eu acompanhado do violão cantava para as crianças, na época que
elas eram bem pequenininhas e brincavam no terreiro numa tardinha assim,
colorida. É a canção, alerto a turma aqui em casa, pela qual eu gostaria de ser
lembrado porque me transporta para dentro de muitos corações. Eita. Alerta de
cisco no olho!
Um
coração bem distante no tempo, em especial...
A
época era aquela da repressão ainda aprontando. Tínhamos nossos grupos de
resistência. Os valorosos movimentos de jovens ligados à Igreja. Nesse tempo,
conheci muitas histórias, vivi outras, tracei caminhos, conheci Leila Paixão e
por ela, Milton Nascimento.
Leila
era diferente da maioria de nós. Tinha uma percepção apurada, reconhecia já
naqueles momentos, chagas doloridas ligadas ao racismo, à afirmação feminina,
aos fossos sociais. Interpretava, tomava juízo, agia. Nos tornamos amigos de
nos visitar nas casas. Eu era muito fã. Admirava o poder intelectual que ela
demonstrava, e que me inspirava. Numa dessas visitas, naquela hora estratégica
do lanchinho (eu sempre chegava na hora de um cumê providencial), ela pôs na
vitrola o mais novo lançamento do Milton. Aquele disco arrasador que trazia
“Caçador de mim” num arranjo fenomenal. Foi um choque.
Confesso
que ouvir aquelas canções naquela época, me pirou o cabeção de acreaninho de
terras ermas dos seringais. Me impôs uma lixiviação nos conceitos, uma renovação
na estética, na apreciação e na compreensão das composições. E um compositor negro!
Um cara igual a mim! Estabeleceu-se ali, uma relação musical companheira. Para
mim, foi um reinventar de espírito na minha caminhada e na minha auto-estima.
No
domingo passado, querida Leila, o Miton fez o último show ao vivo, de palco, da
carreira (e aqui em casa foram tantas as lágrimas, vendo o Bituca pela TV!). Já
está com oitenta anos. O tempo agiu sobre fisiologias frágeis. E ele,
sabiamente se permite preservar-se. Sai dos palcos, mas não sai da música, da
minha história e deste céu de fim de tarde que eu não sei ser dia ou noite.
Quem sabe?
O
que torna e o que deixa é que isso, certamente, quer dizer amor.
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