Vento forte
Tem
acontecido. E eu acho isso tão bom! Ocorreu, outro dia, d’eu acordar
cantarolando uma música muito firme, com refrão forte, composta inteirinha no
sonho da noite. Só que, como era resultado da fantasia, da feita que tornei para
a realidade esqueci tudo (pudera, mas quando já que tenho pegada para
composições com refrões fortes! Dá-se que vou continuar sendo um compositor da
margem reta, quieta e esquecida).
Agora
pela passagem do dia dos pais, aconteceu de novo e foi um espetáculo de não
esquecer. A eternidade prazerosa que a música dá causa, em segundos, em
instantes que nem sei contar; se ajeita no inconsciente de forma tão justa, que
parece milagre de ressurgir e reviver. E olha a moda que este sonho me inventou:
partilhei aquela ilusão maravilhosa com o Dhjeymes. E logo numa canção do Fagner
das antigas, dos primeiros discos dele: “Vento forte” (como para a boa
desenvoltura do Dhjeymes, deveria ser).
Então,
o Dhjeymes... Nos conhecemos na Universidade. Era de uma turma de Geologia que
eu desembarquei em persistente tentativa, na verdade, a última, de continuar o
curso. Nos demos. É um rapazinho adorável. Considerado na TF. E muito pela simpatia
e pelo humor refinado. A mim me conquistou exatamente pela música (e também pelo
primor na imitação do jurássico implacável Velociraptor, aos moldes das tensões
e suspenses do filme). De um tempo em diante passei a me referir a ele como meu
contemporâneo, assim por causa de gostos e lembranças musicais comuns. Era
antenado nas canções de gerações bem antes da dele. Fazíamos porfias. Eu, mais
velho, já além dos quarenta, ia buscar do fundo do baú uma pérola do cancioneiro.
Dava uma dica, uma pista, e não é que o pequeno conhecia, dizia o intérprete, o
autor, cantava um trechinho. Era na obra
do Chico Buarque, porém, que ele era craque. Sabia tudo. Em algumas porfias,
perdi pra ele. Bem justificada a presença do Dhjeymes no meu sonho musical, a
calhar, ora se não.
O sonho
era assim: eu pegava o violão com gosto, acertava o tom, num Dó natural
resoluto e do nada me aparecia o Dhjeymes fazendo um coro comigo, dominando os
detalhes melódicos antigos, nostálgicos, carregados de emoção. E cantamos, e
cantamos. E eu trocava as notas com uma leveza, com uma certeza harmônica e
havia conivência nos olhares e eu admirava aquele garoto e aquela generosidade
que ele tinha em me acompanhar, e o carinho que ele demonstrava por mim, por
essa arte cristã, humana, de cantarmos juntos. Sonho é sempre assim, absoluto.
Composições cósmicas intangíveis donde nenhuma dúvida vinga. Insegurança alguma
se cria. Espaço sem dimensão que nos abriga e nos protege no gozo. Sonho é
resistência às imperfeições da alma. Às demências do coletivo social que pregam
o mal. Sonhar é sinuosidade, é reta torta, oblongada trajetória adimensional, e
é canção cujo tom pode ser o menos presunçoso. Um humilde Dó natural. E que já
vale. Que te preenche. E que te anima, quando tudo passa, a atravessar o dia
todo cantarolando aquela canção. E foi o que eu fiz. No raiar do sol, espiei para
a manhã, respirei o dia, tomei um café frugal, corri para o violão e... o sonho
acabou.
A
realidade mostrou que com mais gosto eu me abraçasse ao violão, não saiu foi
nada. Aceitei que sonho é sonho e que eu, acordado, não sabia tocar a canção “Vento
forte” do Fagner. Vá lá que seja, perseverei. Tirei o vinil da capa, pus pra
rodar no meu três-em-um. E passei o dia todo cantando: “Vento forte/o amor pode
ser... É loucura / que me faz te querer demais”.
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