sábado, 14 de agosto de 2021

crônica da semana - Vento forte

 Vento forte

Tem acontecido. E eu acho isso tão bom! Ocorreu, outro dia, d’eu acordar cantarolando uma música muito firme, com refrão forte, composta inteirinha no sonho da noite. Só que, como era resultado da fantasia, da feita que tornei para a realidade esqueci tudo (pudera, mas quando já que tenho pegada para composições com refrões fortes! Dá-se que vou continuar sendo um compositor da margem reta, quieta e esquecida).

Agora pela passagem do dia dos pais, aconteceu de novo e foi um espetáculo de não esquecer. A eternidade prazerosa que a música dá causa, em segundos, em instantes que nem sei contar; se ajeita no inconsciente de forma tão justa, que parece milagre de ressurgir e reviver. E olha a moda que este sonho me inventou: partilhei aquela ilusão maravilhosa com o Dhjeymes. E logo numa canção do Fagner das antigas, dos primeiros discos dele: “Vento forte” (como para a boa desenvoltura do Dhjeymes, deveria ser).

Então, o Dhjeymes... Nos conhecemos na Universidade. Era de uma turma de Geologia que eu desembarquei em persistente tentativa, na verdade, a última, de continuar o curso. Nos demos. É um rapazinho adorável. Considerado na TF. E muito pela simpatia e pelo humor refinado. A mim me conquistou exatamente pela música (e também pelo primor na imitação do jurássico implacável Velociraptor, aos moldes das tensões e suspenses do filme). De um tempo em diante passei a me referir a ele como meu contemporâneo, assim por causa de gostos e lembranças musicais comuns. Era antenado nas canções de gerações bem antes da dele. Fazíamos porfias. Eu, mais velho, já além dos quarenta, ia buscar do fundo do baú uma pérola do cancioneiro. Dava uma dica, uma pista, e não é que o pequeno conhecia, dizia o intérprete, o autor, cantava um trechinho.  Era na obra do Chico Buarque, porém, que ele era craque. Sabia tudo. Em algumas porfias, perdi pra ele. Bem justificada a presença do Dhjeymes no meu sonho musical, a calhar, ora se não.

O sonho era assim: eu pegava o violão com gosto, acertava o tom, num Dó natural resoluto e do nada me aparecia o Dhjeymes fazendo um coro comigo, dominando os detalhes melódicos antigos, nostálgicos, carregados de emoção. E cantamos, e cantamos. E eu trocava as notas com uma leveza, com uma certeza harmônica e havia conivência nos olhares e eu admirava aquele garoto e aquela generosidade que ele tinha em me acompanhar, e o carinho que ele demonstrava por mim, por essa arte cristã, humana, de cantarmos juntos. Sonho é sempre assim, absoluto. Composições cósmicas intangíveis donde nenhuma dúvida vinga. Insegurança alguma se cria. Espaço sem dimensão que nos abriga e nos protege no gozo. Sonho é resistência às imperfeições da alma. Às demências do coletivo social que pregam o mal. Sonhar é sinuosidade, é reta torta, oblongada trajetória adimensional, e é canção cujo tom pode ser o menos presunçoso. Um humilde Dó natural. E que já vale. Que te preenche. E que te anima, quando tudo passa, a atravessar o dia todo cantarolando aquela canção. E foi o que eu fiz. No raiar do sol, espiei para a manhã, respirei o dia, tomei um café frugal, corri para o violão e... o sonho acabou.

A realidade mostrou que com mais gosto eu me abraçasse ao violão, não saiu foi nada. Aceitei que sonho é sonho e que eu, acordado, não sabia tocar a canção “Vento forte” do Fagner. Vá lá que seja, perseverei. Tirei o vinil da capa, pus pra rodar no meu três-em-um. E passei o dia todo cantando: “Vento forte/o amor pode ser... É loucura / que me faz te querer demais”.

 

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