Bode embarcado na canoa
“Fora...”
Este
comando nos livrava de uns instantes de paralisação total, sem piscar, sem
mexer um mindinho sequer, sem poder reagir a uma coceirinha na ponta do nariz.
A brincadeira se chama “Estalta” que, percebe-se, é uma corruptela da palavra
“estátua”, substantivo que designa peça de arte das mais acuradas.
Quando
estava em Rondônia, por um tempo partilhamos nosso alojamento de solteiros da
mina, com um companheiro que tinha família em Porto Velho. Nos períodos de
férias das crianças, dávamos um jeitinho de abrigar a petizada, para que o
companheiro não se sentisse tão só. E era uma festa. A garotada era animada.
Nos pegavam pra pagode, daqui pra’li nos pregavam a prenda e lá íamos nós ao
desespero que a brincadeira nos impunha. Da feita que ordenavam “estalta, tio!”,
não tínhamos escapatória. O jeito era ficar tesinho da silva senão nos era
aplicado o castigo de bolos graciosos desferidos por aquelas mãozinhas de anjo.
Nossa Valência era quando nos beneficiavam com o “fora”, que era a contraordem.
Era a liberdade dos movimentos recuperada e a missão cumprida de dar alegria à
vida daquela criançada.
Em
março do ano passado, a pandemia me lançou um “estalta, tio!”. Dessa vez sem a
articulação inocente das crianças. O tempo parou. Fora as dores diárias que não
deram trégua, tudo pareceu congelar fosco diante dos meus olhos arregalados de
medo. Sem rir, sem falar, sem vacina, sem remédio para a desesperança. Um
estado de torpor, de ausência e de perda de controle da realidade. Não era uma
peraltice da petizada. Era o flagelo imposto pelo vírus e também por um
desastre político no comando do país.
Agora
em junho, fui alvejado por um “fora”. Meus movimentos foram anistiados. Ainda
sob uma anestesia nos músculos, nos pensamentos, nas reações, me vi
atravessando a Doca de Souza Franco, às seis da manhã. Um momento intrigante, e
digo até, emocionante. Naquele instante, me dei conta que fazia um ano e uns
caroços que eu não botava o pé na rua de vera, de vida, de rumo certo, de
caminho traçado, de horário contado, de Ver-o-Peso e baía do Guajará logo ali. Uma
volta e pouquinho em torno do sol que não sentia a brisa matinal vinda do oeste,
assim, de palmo em cima. Saí para o mundo ainda cheio de medos, e muitos vazios
no coração. Presenciei o sol nascer não com aquela contemplação romântica, mas
com a ansiedade que os compromissos do dia exigem. Nem reparei se isso era bom
ou ruim. Batia o pé na rua depois de um ano e pouco. Ainda adaptando os pulsares
do coração, o ritmo da respiração, o manquitolar do joelho bichado e algum
déficit em minhas ferramentas de orientação e certezas. O mundo lá fora, crente
no poder da primeira dose da vacina correndo nas minhas veias, nem aí pra mim,
não me esperou tornar. A insensatez, o ranço dissimulado, uma cisma estúpida dos agentes do capital comigo não guardou um mínimo de sensibilidade ou paciência para eu aguardasse a segunda dose com o máximo de proteção, como se deu no ano e pouquinho que se passou. Mais dois meses de espera corromperiam os brios do sistema.
O
tempo é diferente da brincadeira de criança. Arrisco dizer que se realiza em
mundos paralelos. Da feita que se encontram no infinito de pouco mais de um ano,
parece que o tempo nem existiu. Ou se existiu, foi no intervalo de uma
piscadela, de uma coceirinha na ponta do nariz, ou de um movimento involuntário
do mindinho. Quando varei na Doca, o sol já despontava animado, a cobrar
vigília, rotina; temperando meu dia com estresse, e me alertando que não
haveria espaço nenhum para dúvida. Não me era permitido um chiado de protesto. Eu
que não me avexasse. Estalta, tio!
Fora...
Descongelei
e voltei ao trabalho presencial, aos movimentos vulgares, mas digo de vera, retornei
mais desconfiado que bode embarcado na canoa.
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