Tal e qual
Eu
me passo para a literatura de época. Tem uma desenvoltura aparentada com essa
que, vez ou outra, me enxiro fazer, e que trata a época saindo do presente e
vagando pelo passado em lembranças, em nostalgias. É, porém, de outra pegada, a
prosa escrita no tempo real, lá no passado. Tem a época escritinha. Tal qual a
vida como ela é. Um Machado de Assis é impecável nos passeios entre os sobrados
da rua Matacavalos, ali, no Rio de Janeiro à beirada posterior do século 19.
Nelson Rodrigues se alimenta de inspirações, subindo em bondes, cultivando uma
conversa solta nos pontos de ônibus, em meio à fervura política de 1968.
Estes
são exemplos que me ocorrem, de escritores que constroem histórias a partir do
cenário urbano mais corriqueiro, de palmo em cima com o instante casual de
esquina.
Tive
algumas experiências que me deram a cuíra de partilhar e que revelam estes
pequenos mundos reais, diários e irretocáveis nas viagens e pontos de ônibus.
Na
minha parada, todos os dias, à alta madrugada, é certa a presença de uma
senhorinha a caminho da ginástica. Quando chega, estamos em três ou quatro. E
ela já vem falando. Faz uma pequena introdução, especulando sobre a
pontualidade do motorista e a seguir, emenda na contação de casos cada um mais
doido que outro. O que mais me impressionou foi um que ela contou sobre o
aparecimento de uma pessoa morta para ela. Nesse dia eu cheguei atrasado e ela
já estava no meio do relato. Fiquei bestinha da silva ao constatar que ela
defendia como fato comum o aparecimento de visagens (e não fantasmas. Segundo
ela, visagens são do bem, fantasmas assombram), assim, em visitas sem
cerimônias, para o café com tapioca da tarde. Ao me aproximar ainda me pediu
conivência àquela maluquice. “Né que aparece?” Provocou. Eu, heim, mandei um creio
em deus padre, e saí de retro. A valência é que o ônibus passou logo.
Ingenuidades,
humanidades, e também, sadismos, crueldades, compõem o universos do usuário de
ônibus.
Ocorreu
certa vez que num daqueles inícios de noite chuvosos, após o trabalho, me
valendo de breve estiagem, me adiantei subindo a Presidente Vargas e dei com um
ônibus daqueles pequenininhos que operam só com o motorista, e da linha que me
deixa na biqueira de casa, paradinho no sinal. Naquela hora e naquelas
circunstâncias molhadas, considerei aquilo uma bênção. Dei aquele pique até a
benção, acenei para o motorista, parei em frente à porta e ele nem seu Souza
pra mim. Portou-se como se eu não existisse. Resoluto, bati na porta, dei a
volta, fiquei à frente do ônibus, me mostrei. E ele, bancando a esporice, apontou
para o semáforo. Justificava em gestos, que não iria abrir a porta porque ali
não era parada atestada e regulamentada pela norma municipal. Não insisti. A
chuva aumentou e eu, humilhado, derrotado, dei aquela corrida de fuga e
livramento. Logo atrás, havia outro ônibus de uma linha que me deixa aquém de
casa, mas já me servia, dei com a mão. O motorista abriu a porta, mesmo ali não
sendo parada carimbada e etiquetada. E tome chuva.
Vendo
com outros olhos as fantasias narradas pela senhorinha da madrugada, reconheço
que visagens são diferentes de fantasmas, como também são diferentes os
motoristas de ônibus, uns dos outros, em humanidades e esporices.
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