sábado, 9 de fevereiro de 2019

crônica da semana- o motora tarnquilão


Tal e qual
Eu me passo para a literatura de época. Tem uma desenvoltura aparentada com essa que, vez ou outra, me enxiro fazer, e que trata a época saindo do presente e vagando pelo passado em lembranças, em nostalgias. É, porém, de outra pegada, a prosa escrita no tempo real, lá no passado. Tem a época escritinha. Tal qual a vida como ela é. Um Machado de Assis é impecável nos passeios entre os sobrados da rua Matacavalos, ali, no Rio de Janeiro à beirada posterior do século 19. Nelson Rodrigues se alimenta de inspirações, subindo em bondes, cultivando uma conversa solta nos pontos de ônibus, em meio à fervura política de 1968.
Estes são exemplos que me ocorrem, de escritores que constroem histórias a partir do cenário urbano mais corriqueiro, de palmo em cima com o instante casual de esquina.
Tive algumas experiências que me deram a cuíra de partilhar e que revelam estes pequenos mundos reais, diários e irretocáveis nas viagens e pontos de ônibus.
Na minha parada, todos os dias, à alta madrugada, é certa a presença de uma senhorinha a caminho da ginástica. Quando chega, estamos em três ou quatro. E ela já vem falando. Faz uma pequena introdução, especulando sobre a pontualidade do motorista e a seguir, emenda na contação de casos cada um mais doido que outro. O que mais me impressionou foi um que ela contou sobre o aparecimento de uma pessoa morta para ela. Nesse dia eu cheguei atrasado e ela já estava no meio do relato. Fiquei bestinha da silva ao constatar que ela defendia como fato comum o aparecimento de visagens (e não fantasmas. Segundo ela, visagens são do bem, fantasmas assombram), assim, em visitas sem cerimônias, para o café com tapioca da tarde. Ao me aproximar ainda me pediu conivência àquela maluquice. “Né que aparece?” Provocou. Eu, heim, mandei um creio em deus padre, e saí de retro. A valência é que o ônibus passou logo.
Ingenuidades, humanidades, e também, sadismos, crueldades, compõem o universos do usuário de ônibus.
Ocorreu certa vez que num daqueles inícios de noite chuvosos, após o trabalho, me valendo de breve estiagem, me adiantei subindo a Presidente Vargas e dei com um ônibus daqueles pequenininhos que operam só com o motorista, e da linha que me deixa na biqueira de casa, paradinho no sinal. Naquela hora e naquelas circunstâncias molhadas, considerei aquilo uma bênção. Dei aquele pique até a benção, acenei para o motorista, parei em frente à porta e ele nem seu Souza pra mim. Portou-se como se eu não existisse. Resoluto, bati na porta, dei a volta, fiquei à frente do ônibus, me mostrei. E ele, bancando a esporice, apontou para o semáforo. Justificava em gestos, que não iria abrir a porta porque ali não era parada atestada e regulamentada pela norma municipal. Não insisti. A chuva aumentou e eu, humilhado, derrotado, dei aquela corrida de fuga e livramento. Logo atrás, havia outro ônibus de uma linha que me deixa aquém de casa, mas já me servia, dei com a mão. O motorista abriu a porta, mesmo ali não sendo parada carimbada e etiquetada. E tome chuva.
Vendo com outros olhos as fantasias narradas pela senhorinha da madrugada, reconheço que visagens são diferentes de fantasmas, como também são diferentes os motoristas de ônibus, uns dos outros, em humanidades e esporices.



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