Meio-dia
plácido cantor
Desde
que tempo tô com este título na cabeça e não encaixo numa crônica. É um caso
típico em que o título aparece assim, antes de qualquer idéia, de qualquer
enredo, e vem procurando casa, reivindicando guarida. Surgiu durante um soninho
que dei no barco, na travessia de Barcarena para Belém. Dediquei-lhe enorme
respeito. Porque, olha, coisa que estimo é recado do inconsciente. Dicas daquela
antecâmara misteriosa que fica entre os domínios da fantasia e da realidade. É
caso de cavucar um isso, um aquilo de inspiração em favor deste título.
Posso
recorrer à rotina do meu tio Tadeu para desenrolar o tema. Tinha muito de
meio-dia, no meu tio. Era a horinha que chegava para o almoço vindo das bandas
do centro, no afogueado do Nova Marambaia-Telégrafo. Nem tirava a camisa,
porque não sentava à mesa, nu da cintura pra cima. Dos sapatos sim, livrava-se.
Punha um chinelo. Comia, ficava por ali um pedacinho, puxava uma conversa, enquanto
se estirava na cama para uma brevíssima sesta. Sem despertador e sem que
ninguém o chamasse, acordava certo no horário de voltar. Fazia a higiene,
calçava os sapatos e pegava o rumo do centro de novo, no ônibus lotado.
De
outra maneira, recorro a uma cisma que o povo mais aquele de erudito tem com as
minhas concordâncias. Acontece quando uso (e olha que uso que só. Sou useiro e
vezeiro) a locução “em plena meio-dia”. Dou-lhe mina de guiza, pra desviar das
espetadas que recebo porque, dizque, não convém usar do adjetivo ‘plena’ na
construção porque a palavra justaposta ‘meio-dia’ compreende-se estar no
masculino. Mas quando, já, este um! Há uma elipse na idéia. Há muito de escondidinho
ante a luz à pino. Há o recato do mistério e a ocultação do óbvio. É uma
expressão revolucionária, inquieta. Apresenta-se reduzida para ter mais impacto
(e gerar insatisfações?). Pretende ser a
ponta afiada da lança. De contato mínimo e efeito voraz. Fosse eu pegar corda e
desenrolar na íntegra o meu descontentamento, seria mais ou menos nesta pegada:
“Meu pai eterno da minha alma! Essas coisas desagradáveis e violentas
acontecendo logo agora, em plena hora plácida e santa do meio-dia!”. Objetiva e
reduzidamente, a discordância é um desabafo.
Ocorre
também que, quando a tarde vem chegando, a temperatura muda e o dia fica mais
aquecido: é hora do vento virar. Antigamente se guardava um silêncio neste
momento em que virava o Geral. É nessa horinha, que o dia canta. Plena hora
sagrada do meio-dia, o sol cortando o meridiano, a luz na maior atividade, o
vento abre o caminho entre as árvores para uma canção mítica, sem notas ou
ritmo definidos. É experiência para se regar, é oportunidade de se refletir
sobre as desumanidades emergentes e também sobre a estrada à nossa frente. Nada
pode interromper o encanto desta hora plena do meio-dia.
A
mesa está posta. Procuro palavras poéticas sem propósito de rima. Dou com uma
posta de peixe estalando de douradinha finalizada na baixela. Blasfemo, nu da
cintura pra cima, me avio de um prato e me ajeito para comer. Antes ligo o
rádio. Uma canção inunda o ambiente de notas temperadas de ilusões. Na
sequência, intervalo para o comercial e a hora certa. Em Belém, pontualmente,
Meio-dia plácido cantor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário