sábado, 19 de janeiro de 2019

crônica da semana - meio dia


Meio-dia plácido cantor
Desde que tempo tô com este título na cabeça e não encaixo numa crônica. É um caso típico em que o título aparece assim, antes de qualquer idéia, de qualquer enredo, e vem procurando casa, reivindicando guarida. Surgiu durante um soninho que dei no barco, na travessia de Barcarena para Belém. Dediquei-lhe enorme respeito. Porque, olha, coisa que estimo é recado do inconsciente. Dicas daquela antecâmara misteriosa que fica entre os domínios da fantasia e da realidade. É caso de cavucar um isso, um aquilo de inspiração em favor deste título.
Posso recorrer à rotina do meu tio Tadeu para desenrolar o tema. Tinha muito de meio-dia, no meu tio. Era a horinha que chegava para o almoço vindo das bandas do centro, no afogueado do Nova Marambaia-Telégrafo. Nem tirava a camisa, porque não sentava à mesa, nu da cintura pra cima. Dos sapatos sim, livrava-se. Punha um chinelo. Comia, ficava por ali um pedacinho, puxava uma conversa, enquanto se estirava na cama para uma brevíssima sesta. Sem despertador e sem que ninguém o chamasse, acordava certo no horário de voltar. Fazia a higiene, calçava os sapatos e pegava o rumo do centro de novo, no ônibus lotado.
De outra maneira, recorro a uma cisma que o povo mais aquele de erudito tem com as minhas concordâncias. Acontece quando uso (e olha que uso que só. Sou useiro e vezeiro) a locução “em plena meio-dia”. Dou-lhe mina de guiza, pra desviar das espetadas que recebo porque, dizque, não convém usar do adjetivo ‘plena’ na construção porque a palavra justaposta ‘meio-dia’ compreende-se estar no masculino. Mas quando, já, este um! Há uma elipse na idéia. Há muito de escondidinho ante a luz à pino. Há o recato do mistério e a ocultação do óbvio. É uma expressão revolucionária, inquieta. Apresenta-se reduzida para ter mais impacto (e gerar insatisfações?).  Pretende ser a ponta afiada da lança. De contato mínimo e efeito voraz. Fosse eu pegar corda e desenrolar na íntegra o meu descontentamento, seria mais ou menos nesta pegada: “Meu pai eterno da minha alma! Essas coisas desagradáveis e violentas acontecendo logo agora, em plena hora plácida e santa do meio-dia!”. Objetiva e reduzidamente, a discordância é um desabafo.
Ocorre também que, quando a tarde vem chegando, a temperatura muda e o dia fica mais aquecido: é hora do vento virar. Antigamente se guardava um silêncio neste momento em que virava o Geral. É nessa horinha, que o dia canta. Plena hora sagrada do meio-dia, o sol cortando o meridiano, a luz na maior atividade, o vento abre o caminho entre as árvores para uma canção mítica, sem notas ou ritmo definidos. É experiência para se regar, é oportunidade de se refletir sobre as desumanidades emergentes e também sobre a estrada à nossa frente. Nada pode interromper o encanto desta hora plena do meio-dia.
A mesa está posta. Procuro palavras poéticas sem propósito de rima. Dou com uma posta de peixe estalando de douradinha finalizada na baixela. Blasfemo, nu da cintura pra cima, me avio de um prato e me ajeito para comer. Antes ligo o rádio. Uma canção inunda o ambiente de notas temperadas de ilusões. Na sequência, intervalo para o comercial e a hora certa. Em Belém, pontualmente, Meio-dia plácido cantor.

Nenhum comentário:

Postar um comentário