O
portal e os pés de camapu
Não
era todo dia, mas acontecia com certa regularidade durante a semana. Minha avó
me pegava pelo braço e ao cair da noite, me levava até a esquina da Lomas, para
apreciar o movimento. O farol dos carros, o barulho ritmado dos motores, o
impessoal desembarque dos ônibus compunham o cenário de entrada para o grande
portal. Para o mundo das idéias. Meu mundo e da minha avó.
Morávamos
na Marquês. Não passava carro na rua. Nossa rotina era quase rural. Casas com
grandes quintais, minados de cajueiros, mangueiras, ameixeiras; assim de pés de
camapu espalhados pelo terreiro. O trecho da Marquês entre Lomas e Mauriti, era
de relevo salteado. Em alguns pontos, formava lagoas imensas e só permitia o
trânsito de pessoas a pé, ainda que beirando o batente das casas. Em outras
partes, desenhava pequenas elevações, e que eram rapidamente transformadas em
campos de futebol ou arenas para os jogos de Bandeirinha e Cemitério, pela
garotada. O único transporte que se aventurava na área era o caminhão da
Garoto, que distribuía o refrigerante nas mercearias das esquinas. Em cada
canto tinha uma.
O
serão que fazíamos ao cair da noite era a tentativa de minha avó de ampliar os
horizontes, expandir a percepção. Esperava reconhecer o porvir no asfalto e no
trânsito iluminado da Lomas. Eu percebia o aquecimento, o fulgor rubro se
acendendo na face de minha avó quando a gente chegava à esquina. Havia, como em
outros cantos do bairro, bem na quina da calçada, uma peça de concreto erguida
a mais ou menos um metro de altura. Não sei a serventia daquilo. Era uma coluna
rija, imponente. Era o nosso ponto de sustentação. Nossa escora. Encostávamos à
coluna, mãos dadas, e nos dávamos a imaginar ante a animação dos faróis.
Quantas
carências antigas se encontrando ao longe. Infinitas pelejas. Sofrimentos tênues
efêmeros. Dramas perenes ferozes. Víbora vida em recinto fechado. Intenso
combate. Venenos dispersos e botes no ar. A meu favor, defesas esganiçadas da
alma. Batalha de vida ou morte. Pés delicados despedaçando a cabeça da besta.
Eita! Peleja de lida e sorte.
Quantos
afazeres do lar, menino na beira da saia. Nariz escorrendo. Febre alta na
madrugada. O beabá nas encruzilhadas dos saberes. A terra, o amor proibido
chamando, a sedução e os prazeres mundanos. Contra a minha avó, a iminência do
desenganche das mãos, o drama insuportável da solidão, o golpe fatal do adeus.
Destarte,
ao largo, o credo do bem estar, do bem querer a quem me quer bem. Sem mãos
dadas com ninguém. Prosperidade única. Dinheiro em penca. Vestindo amarelo ouro
fartura. Eu por mim, vou muito bem. Não sei os outros. Recinto fechado. Ser
feliz sozinho. Fortalecimento do mal comum se anunciando perto.
E
uma coluna de água e vento crescendo no céu em uma tempestade jamais vista. O
portal em fúria, Como se fosse um aviso. Eu avisei!
Voltamos
outras vezes, eu e minha avó, encandeados pelos focos tensos dos faróis, às
metáforas da Lomas. Amparados por uma coluna monolítica quase do meu tamanho. O
coração tão perto e tão longe dos desembarques impessoais. Das ameixeiras, dos
pés de camapu.
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