sábado, 6 de outubro de 2018

crônica da semana- Umbigo do brasil


O umbigo do Brasil
Dom Bosco sonhou com a terra prometida que verteria leite e mel. Estava localizada no centro geográfico do Brasil. Um ponto harmonizado proporcionalmente no corpo de nosso adorado país, como se fosse o  umbigo do Homem Virtruviano de Leonardo Da Vinci.
Brasília seduz.  Tanto pelo misticismo arraigado ao  paralelo 15 Sul, quanto pelos pilares mundanos do poder central e seus mistérios.
Antes mesmo de saber do sonho de Dom Bosco, conheci a sordidez velada, a vilania escondida, a maldade grata que atingiu minha vizinha enfermeira-chefe. Todos diziam que era o orgulho da rua. Entre tantas e boas moças de família, foi a única a conquistar o diploma de um curso superior. À sombra confidenciavam (e eu ouvi de gente próxima, com estes ouvidos que a terra há de comer) que não ia pra frente de serviço, não acompanhava os partos na maternidade, não por ser enfermeira formada, mas “por não ficar bem, né, já pensaste”. Era o preconceito racial se mostrando com toda a monstruosidade na minha infância, para nunca mais sair da memória. Preconceito e despeito. Afinal foi a única da rua a se formar numa universidade.
Morava numa casa que tinha um quintal grande com uma mangueira exuberante bem no meio. Era a nossa companheira na brincadeira de bola que combinávamos no final da tarde. Nos dava sombra, vento fresquinho, um farfalhar festivo dos galhos. Eram muitos na família. Eu me dava com os meninos, e com as meninas. Éramos parceiros nas pelejas de futebol e nos ensaios da quadrilha que a gente tinha na rua. Cheguei a trocar olhares saidinhos com a mais nova que era do meu top. Um pirralhinho, eu, e só queria ser, me amostrando faceiro pra ela na hora do balancê. O pai morreu e a paquera nem começou. Todos nós sentimos muito. Tantos filhos ainda a criar. Ficou a mãe e a enfermeira-chefe cuidando da família.
Certo dia, durante uma chuva forte com vento e muito trovão, um raio partiu a mangueira em várias e flamejantes partes. Nossa alegria foi calcinada. O tronco ainda resistiu em pé por um tempo. Muito frágil, desidratado, foi se desprendendo em lascas comoventes, até morrer de vez largado ao chão do nosso campinho.
Quando fui ser amigo de Dom Bosco, na Escola Salesiana, tive contato com sua história. Tomei conhecimento do sonho que teve com a terra prometida, localizada no paralelo 15 Sul. Aceitei a versão oficial, e a reconheci como se fosse uma profecia anunciando Brasília, a terra de onde se irradia o poder, o planalto dominador de consciências, o núcleo denso de nuvens carregadas que nos enviam raios e trovões. Brasília sedutora.
Na rua, sussurros por sobre os muros, maledicências na hora de varrer a calçada e até entre nós, moleques, quando nos abalávamos a outras jornadas que não ao campinho da enfermeira-chefe, maldávamos aos cochichos que ela era chefe, porque não podia ir para a linha de frente, acompanhar um parto, “já pensou, uma mulher de cor, apanhar uma criança”. Preconceito. Despeito. O pai morreu, a nossa alegria foi calcinada e não foi no centro geográfico do Brasil. Foi no quintal da enfermeira-chefe, de onde vertia leite e mel.

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