O umbigo do Brasil
Dom Bosco sonhou com a terra prometida que
verteria leite e mel. Estava localizada no centro geográfico do Brasil. Um
ponto harmonizado proporcionalmente no corpo de nosso adorado país, como se
fosse o umbigo do Homem Virtruviano de Leonardo Da Vinci.
Brasília seduz. Tanto pelo
misticismo arraigado ao paralelo 15 Sul, quanto pelos pilares
mundanos do poder central e seus mistérios.
Antes mesmo de saber do sonho de Dom
Bosco, conheci a sordidez velada, a vilania escondida, a maldade grata que
atingiu minha vizinha enfermeira-chefe. Todos diziam que era o orgulho da rua.
Entre tantas e boas moças de família, foi a única a conquistar o diploma de um
curso superior. À sombra confidenciavam (e eu ouvi de gente próxima, com estes
ouvidos que a terra há de comer) que não ia pra frente de serviço, não acompanhava
os partos na maternidade, não por ser enfermeira formada, mas “por não ficar
bem, né, já pensaste”. Era o preconceito racial se mostrando com toda a
monstruosidade na minha infância, para nunca mais sair da memória. Preconceito
e despeito. Afinal foi a única da rua a se formar numa universidade.
Morava
numa casa que tinha um quintal grande com uma mangueira exuberante bem no meio.
Era a nossa companheira na brincadeira de bola que combinávamos no final da
tarde. Nos dava sombra, vento fresquinho, um farfalhar festivo dos galhos. Eram
muitos na família. Eu me dava com os meninos, e com as meninas. Éramos
parceiros nas pelejas de futebol e nos ensaios da quadrilha que a gente tinha na
rua. Cheguei a trocar olhares saidinhos com a mais nova que era do meu top. Um
pirralhinho, eu, e só queria ser, me amostrando faceiro pra ela na hora do
balancê. O pai morreu e a paquera nem começou. Todos nós sentimos muito. Tantos
filhos ainda a criar. Ficou a mãe e a enfermeira-chefe cuidando da família.
Certo
dia, durante uma chuva forte com vento e muito trovão, um raio partiu a
mangueira em várias e flamejantes partes. Nossa alegria foi calcinada. O tronco
ainda resistiu em pé por um tempo. Muito frágil, desidratado, foi se
desprendendo em lascas comoventes, até morrer de vez largado ao chão do nosso
campinho.
Quando
fui ser amigo de Dom Bosco, na Escola Salesiana, tive contato com sua história.
Tomei conhecimento do sonho que teve com a terra prometida, localizada no
paralelo 15 Sul. Aceitei a versão oficial, e a reconheci como se fosse uma
profecia anunciando Brasília, a terra de onde se irradia o poder, o planalto
dominador de consciências, o núcleo denso de nuvens carregadas que nos enviam
raios e trovões. Brasília sedutora.
Na
rua, sussurros por sobre os muros, maledicências na hora de varrer a calçada e
até entre nós, moleques, quando nos abalávamos a outras jornadas que não ao
campinho da enfermeira-chefe, maldávamos aos cochichos que ela era chefe,
porque não podia ir para a linha de frente, acompanhar um parto, “já pensou,
uma mulher de cor, apanhar uma criança”. Preconceito. Despeito. O pai morreu, a
nossa alegria foi calcinada e não foi no centro geográfico do Brasil. Foi no
quintal da enfermeira-chefe, de onde vertia leite e mel.
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