A revolução acreana
Quando cheguei ao seringal, meu tio estava
pegado, consertando um Jeep. Demorou um pouco até sair debaixo do carro. Todo
breado de terra, graxa, óleo, suor, apanhou um molambo, esfregou as mãos
naquele trapo tisnado, depois tirou o último pouquinho de resíduo no short e
veio ao meu encontro dar a bença. Uma distância de trinta anos se estreitava
ali.
A única lembrança que tinha dele contava
com a participação de um carro também. Uma Rural. Havia estancado bem no meio
de uma lagoa, nos arredores do igarapé do Ina. Ao descer para uma inspeção, tio
Rui topou com um jacarezinho brabo. Dominou o bicho, no meio daquele alagado, o
imobilizou e depois veio fazer medo pra gente, exibindo a ferinha pela janela
da Rural. Esta é uma lembrança da infância, bem lá do passado, quando eu ainda era
um acreaninho de seringal.
Trinta anos depois, residente e
domiciliado em Belém, por causa de uma viagem a trabalho, fui bater os costados
no Acre de novo. Não perdi oportunidade de conhecer o seringal onde nasci. Sem
meu pai, o seringal estava sob o comando do tio Rui, que para mim, era o homem
que resolvia problemas de carro e não tinha medo de jacaré. Este reencontro
confirmou a minha tese, pelo menos na parte que trata de mexer em motores de
carro. Não indaguei sobre os jacarés, mas os cinco dias que passei no seringal
me apresentaram um tio fascinante.
Tinha um comportamento decidido, um perfil
obreiro. Acordava às cinco, pilava arroz, tirava mourão, buscava água... aqui,
ali, mexia no Jeep. Eu junto. Ao anoitecer, se aquietava e aí me surpreendia
com a perspicácia, com a destreza. Com a racionalidade ao lidar com as coisas
do mundo. Era inteligente pacas. Portador de fala fácil, vocabulário vasto. Um
historiador. Sabia a saga da família
desde os primeiros que chegaram do Nordeste. Aventureiro. Largou-se pelos
baixios da Amazônia em busca de ouro. Orgulhoso. Poderia ter sido um bacaninha
na turma da coletoria, me confidenciou, mas não tinha vocação para barnabé. Bom
prosador, dava definição de tudo, desde o preço da borracha no mercado
internacional até os motivos da praga de cupins que consumia as paredes do
barracão. Fosse hoje, manteria umas cinco planilhas de Excel para guiá-lo na
rotina.
Além de sermos baixolinhas e barrigudinhos,
percebi traços de meu tio na minha batidinha diária. Em muitas coisas, puxei
pra ele (tenho as minhas planilhas de Excel dando definição dos meus dias).
Antes de vir embora, tivemos um longo papo
ao cair da noite. Meu tio desceu ao igarapé para o banho. Eu fiquei sentado à
margem. Pegou bucha, sabão e ensaboou o corpo. Enquanto se ensaboava me falava
da vida, dos costumes e regras do homem, da arte de ter várias mulheres, de
arrumar uma penca de filhos, de multiplicar o medo e a idéia do poder sobre os
outros, à bala, se necessário fosse. Mostrou, naquele último dia de visita, a
estreita distância entre o fascínio fácil e a onerosa repulsa.
Hoje acho que o único fato solidamente indelével dessa
história é o jacarezinho enfezado me fazendo medo pela janela da Rural.
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