Pingo
do i
Mamãe
é que falava assim quando eu me mostrava traquina, atentado que só, mas um
pingo de gente. Menor. Bem menor que as outras crianças que dividiam uma caixa
de sabão comigo, fazendo de conta que aquela armação em madeira era o jipe do
tio Rui ganhando os estirões que cortavam os seringais do Acre.
Não
falava por mal, mamãe. Ao contrário. Havia carinho, afeto, quando deixava
escapar. Tinha, codificados naquelas palavras, minha mãe, um compromisso, um
zelo. Reconhecia o zinho que eu era, percebia meu futuro e firmava proteção, elaborava
orientações e defesas.
Mais
tarde, quando fui estudar na Aparecida, já nesta Belém que nos acolheu, ante a
cisma da molecada ao me perguntarem por que eu era tão pequenininho, dava a
resposta ensaiada, por anos, com a mamãe: “porque Deus quis”. E fim de papo.
Antes
que se multiplicassem esses espelhos grandes nas colunas dos shoppings e dos magazines;
ou antes que as fachadas espelhadas, dessas que a gente se vê e se compara com
outras pessoas em atitudes espairecidas virassem arte da arquitetura urbana, eu
nem percebia que era tão baixola, tão pingo do i. Agora, já na batida da campa
é que de repente, comparo as escalas. Estes traçados modernos me dão noção de
estatura que eu nem maldava. Porque a gente, os nossos olhos são para o mundo,
e não para a gente mesmo. Não me percebia e isso nem me interessava. Cuidei
sempre para me expressar em ser pra fora. Para o mundo. Um ser útil, sem
moldura de madeira, feito a menção de jipe do tio Rui, tamanho ela que fosse.
Encaro
os espelhos da cidade na boa e agora, ora veja, vou me comparando. Como
proteção, sou obrigado a olhar pra dentro de mim, o que raramente faço, e em
outras épocas nem atinava, pois via nisso sinal de presunção.
Para
fora de mim, pelo comum, é que as visões me atraem. Descubro gentes. Traços
únicos nas pessoas. Formulo impressões. Guardo e gravo desvios, cacoetes,
simulações. Cinismos. Reconheço, como reconhecia em mamãe, carinho e afetos.
Para o bem ou para o mal, meus olhos preferem medir o mundo sem pingos nos is
como referência. Prefiro as notas absolutas de personalidade e caráter assim,
mirando de palmo em cima.
Mas
quando me vejo estimulado a olhar pra dentro de mim, não titubeio em reconhecer
a minha grandeza. Vôo nas altas altitudes.
Dia
desses, fui abordado por uma pessoa com quem divido meus dias no trabalho. Não
costumo confundir as coisas. Na fábrica sou peão. Na lagoa, de cócoras com os
sapos. Aí, por um motivo qualquer, foi mencionada a minha condição de escritor.
Sem disfarçar, meu interlocutor vilipendiou, fez pouco caso, caçoou do fato
d’eu, um peão de fábrica, escrever no jornal, crônicas que, segundo ele,
ninguém que conheça lê. Ameaçou fazer a bacanagem de comprar o jornal no sábado
desde que eu dedicasse umas linhas a ele. Como meus olhos miram o externo, o
lado de fora, havia uma possibilidade. Mas no meio do caminho, resolvi falar do
baixolinha aqui. Optei voltar meus olhos para a minha história, para o interior
da minha alma e medir-lhes a envergadura. Não vou falar dele não. Decidi ser
presunçoso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário