sábado, 14 de abril de 2018

crônica da semana- princípio da certeza


O princípio da certeza
Nada parece ser como é. Palavras dizem pouco. Lógicas e tratados são vãs cogitações. Citações diluem-se, comprovações bifurcam-se. Provocações espraiam-se. Convicções meandram e previsões dispersam-se. Dúvidas acomodam-se em paz. O que se diz não é o que se ouve. O concreto dobra-se em pegajosa gosma. Caráter mescla-se a cinismos fartos. Vapores baratos saem caros. O que se vê, oculta-se em sombras tenebrosas. Sentir, a gente sente, e dói. O riso entorta-se em incontroláveis convulsões.
Nada é sério. A virtude fragiliza-se. A pecha cresce. O vício grassa. A graça mingua. A praça se cala. A voz do coração vibra em ondas de silêncio.
Gentilezas geram torturas camufladas.
E dissimulações simpáticas fazem das suas.
(Na vila operária em que eu morava, na época que virei e mexi por Rondônia, cavucando a terra, sempre havia uma movimentação no carnaval. Duas agremiações eram formadas. A ‘Unidos de Cachoeirinha’, composta pelos operários, operárias e agregados adultos. E a ‘Crias de Cachoeirinha’, que como sinaliza o nome, era uma confraria festiva da garotada da vila. As duas voluntariosas escolas faziam a animação do carnaval. Em todos os dias de folguedo, arrastavam os empolgados brincantes pelos corredores restritos do lugar.
No último dia, as duas escolas se encontravam numa disputa para ver quem levava o troféu de campeã. Um júri, quase sempre formado pelo alto-clero da empresa, se encarregava de dar a decisão. Em todos os anos que passei por lá, o confortável desfecho foi o mesmo.
Ao final dos desfiles, as notas eram declaradas.
O gerente administrativo: Unidos de Cachoeirinha, 10. Crias de Cachoeirinha, 9.
O gerente de produção: Unidos de Cachoeirinha, 10; Crias de cachoeirinha, 9.
A gerente de pessoal: Unidos de Cachoeirinha, 10; Crias de Cachoeirinha, 9.
Depois do recolhimento dos jurados a um cantinho afastado, o gerente geral vinha como a papeleta e anunciava a campeã. E todo ano, quem ganhava, apesar de somar a menor nota, era a escola de samba das crianças.
As dúvidas da hora acomodavam-se em paz, a batucada começava e o povo feliz se entregava aos prazeres fugazes.
A contradição era exercida com largas licenças. A ação protetora, paternalista se impunha, em que pese indícios de injustiça, ante a exatidão na conta de somar).
Nada parece ser como é. Assim se forja a história. A escuridão se expande em vetores universais. E em estranhas formas. A forma da alma é pensa. E estes brilhos falsos. Entre brilhos ocos. Estribilhos vastos. Formam rios intermináveis de imprecisões. Sou a favor, embora seja contra.
Nada é sério. As evidências agonizam. A culpa cresce e cobre de setentrião a meridião. A opinião própria, à luz da ordeira e justa palavra, queda-se ao oportuno corporativismo. A água que escorre da praça é vermelha e amornada de lágrimas. A voz do coração vislumbra navegar em mar de silêncio e sombras.
(Uma escola de samba tem a maior pontuação, mas a campeã é a outra). Nada parece ser o que, aparentemente, é. Brilhos arrogantes, entre brilhos ocultos.
Estribilhos ruidosos ecoam e amedrontam as crianças.


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