No
tempo da delicadeza
Eu
andava pra lá e pra cá com um aparelhinho de CD que meu amigo Dedé havia
trazido de Manaus. Era tipo um walkman. Pegava
rádio, tinha fone de ouvido, só que no lugar das antigas fitas K7, tocava o
moderno compact disc. Ouvia mais o rádio. Vez ou outra, quando pintava um
disquinho, eu experimentava. Era meio incômodo porque travava, pulava de faixa,
com os solavancos das minhas caminhadas diárias resolvendo as urgências da
vida. E nem era tão compacto assim. Tivemos desavenças, mas me afeiçoei àquele
aparelhinho mesmo, quando a jornalista Jeniffer Galvão me emprestou um disco,
para mim, até hoje, raríssimo. Tão raro, que depois se perdeu para nunca mais
ser achado. Era uma coletânea do Chico Buarque que, de curioso, tinha o fato de
trazer músicas pouco conhecidas, do compositor. E era uma produção farta. Tinha
pra mais de 20 músicas. Tantas e belas. Fui me apegando a algumas. Tirando as
minhas preferidas (que continuam até hoje, canções pouco conhecidas). Destaco
como a pri, a arrebatadora “Todo sentimento”.
Era a canção que rodava sem parar quando eu estava recluso
entre as paredes brancas daquele hospital, velando o sono inquieto de Luzia.
Um tempo difícil. Contudo, de inusitada delicadeza.
A compreensão não se faz perfeita num caso tão dramático como
este. A melodia agoniada dos gemidos reverberando na parede branca do quarto. A
luz dos olhos da pessoa amada se apagando, o peito se apertando, a dor tomando
conta da alma e, ao mesmo tempo, uma delicadeza enevoada, disfarçada, fosca, mas
incompreensivelmente densa, nos envolvendo, nos afagando.
Todo sentimento agrupado numa canção.
Caminhos, liberdades e urgências da vida pelas ruas de piçarra
da Pedreira. Mamãe provedora e cuidadora de mim. Construção diária. De mãos
dadas. Benças e carinhos incessantes. Compromissos reiterados. Até o amor cair
doente. (E meus olhos acesos procurarem os teus sumindo para os escuros de
todos os sentimentos. Sem íris. Descoloridos. Fitando a parede tão perto, tão
longe, de textura branca silenciosa, inquietante. Um olhar apagando). E meu tempo
de te amar, tão lento. E, naquele instante, absurdamente urgente. Inseguro. De
menino querendo mãe. Colo. Um desejo tão ardente. Um desejo impossível. Te
querer, te querer de volta. (Dá cá. Dá cá tua mão. Bença).
O fone ajustado no ouvido, as paredes brancas finitas,
racionais, cruéis. O CD tocando sem travar, sem pular de faixa, o disco raro da
Jeniffer, que, faixa por faixa, depois dessa dor sumiu para sempre. E eu sem
dizer nada. Numa insana calmaria, mergulhado em surpreendente, em
incompreensível delicadeza (a canção).
Seguindo ao lado teu, como o encantado, como o prometido,
como o filhinho (dá cá, dá cá tua mão), de mãos dadas pelos estirões da alma,
ao encontro de profundezas, de substâncias. Travando lutas, conquistando cada
fração das últimas horas.
As paredes brancas, a tosse, a tosse, rompendo o pulmão,
explodindo todo sentimento, apagando os olhos, escurecendo os horizontes. A tosse nos desvencilhando dos caminhos,
das urgências e da vida pelas ruas de piçarra da Pedreira.
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