sábado, 13 de fevereiro de 2016

crônica da semana- platinoflor

Platinoflor
Seu Valdivino tinha uma taberninha sortida na vila e a especialidade da venda era o chope. Fazia um sucesso danado, não sei bem por que, já que o produto era um Q-suquinho básico, conhecido pela garotada pelo sabor forasteiro e pela alta concentração de açúcar.  Penso agora que a massiva aceitação fosse por um detalhe: O saquinho do chope era quadradinho, não era desses esticadinhos que grassam ainda hoje, e não era fechado em nó cego, também. As bordas eram soldadas a alta temperatura, numa maquininha que acho que só ele e mais uns poucos tinham em Belém.
Trabalhei na taberna, um tempo. E era parte ativa na produção. Não fazia o suco, mas enchia os saquinhos e operava a maquininha (que funcionava como uma guilhotina. A gente colocava a borda do saco sobre uma base, acionava com um pedal a placa de metal quente suspensa, e ela descia pressionando e colando as bandas. Depois, congelador).
No seu valdivino tinha de tudo. Estivas, secos, molhados, feijão, arroz, anil, ovos, sabão em barra. Era bem abastecida a taberninha. Só não era na pista, e não tinha lâmina de barbear, mas era caminho mais curto da vizinhança para as precisões urgentes.
As instalações eram em madeira pesada e viscosa, parece que untadas por um filme diário de vapores. E tudo muito apertadinho. Estas condições comprimidas privilegiavam o aprisionamento dos cheiros mais fortes. A lembrança do fumo de picar me é, até hoje, muito íntima. Mas também, a farta venda de uma peça de tabaco e um caderno de abade era uma tarefa que competia ali, ali, com a saída dos chopes.
Quando fui trabalhar com seu Valdivino, foi como se eu tivesse recebido um certificado de menino bom. É que para estar de par com ele, haveria o ajudante, de ser da maior confiança, pelo fato de seu Valdivino já estar numa idade avançada e... Ser cego.
Eu achava impressionante aquela percepção do meu patrão. Ele controlava e se certificava dos valores das notas. Conhecia cada cédula pelo tato. Não havia uma pesada que eu fizesse na balança ou uma medida de óleo que eu entornasse na cumbuca do freguês, que ele não atinasse, não desse um pitaco. De tudo em quanto, ele dava definição. Os filhos, de vez em quando auditavam a rotina da venda, mas quem controlava tudo mesmo era ele, o seu Valdivino.
Na venda tinha de um tudo. Só não tinha lâmina de barbear. Uma vez por semana ele me mandava lá na pista comprar uma caixa de lâminas. Recomendava com intensa gravidade: “Platinoflor. Não vai me trazer outra. Só serve  Platinoflor”.
Obediente, eu chegava lá no armarinho da Pedro Miranda e pedia que me aviassem um pacotinho de giletes ‘Platino plus’, numa corruptela da marca que tinha o termo ‘platina’, originalmente grafado em latim.
Mas, versão não tão corrompida quanto a empregada pelo seu Valdivino.
Fosse pela flor, pela platina, pelo plus ou pela corruptela, seu Valdivino no dia seguinte estava barbeado, quando eu chegava. E pronto, prontinho para perceber os movimentos, as medidas, o despencar da guilhotina quente fechando os saquinhos de chope...


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