O toque-toque do meu coração
Às vezes penso que alguns sons vêm do além
para nos intrigar. Um que não falta é o cocoricó do galo. Este é um barulho que
me causa espécie. Ainda mais porque, em tempos modernos, não se limita a
propagar-se na alta madrugada. Ocorre a qualquer hora. Na plena hora de
meio-dia, ou na silenciosa madrugada, lá s’stá a cantoria vinda d’algum canto.
E este é outro traço que requer atenção. Ninguém sabe de qual canto, vem o
canto. É um cacarejo que domina o espaço. Um propagar isotrópico. Envolvente.
Parece coisa do outro mundo. Difícil de explicar. A gente não tem notícia nadica
de nada da existência de galo na redondeza, não conhece vizinho perto que crie
ou zele por um. Mas a batida é certa. A hora que dá na veneta, o bicho vem e
canta em alto e bom som, parecendo até que tá no pé do ouvido da gente.
Outro corriqueiro é o zincricri da
maquita. Este é som que impera no fim de semana. Em qualquer parte do mundo.
Seja um país rico ou uma nação pobre. Seja uma civilização tecnológica ou uma
aldeia tradicional. Seja um território denso de gentes, ou um ermo salteado de
casas simples. Em algum lugar, rente como pão quente, haverá sempre alguém
cortando uma peça de azulejo numa manhã de sábado e espalhando o barulho
contínuo e forte do motorzinho em (ziiiimmmmm) alta rotação.
Estes são barulhinhos nossos de cada dia.
Socialmente reconhecíveis. Comuns. Sons que partilhamos e que nos identificam
como agentes passivos e cúmplices urbanos. Formam o pacote de comentários
certos nas rodadas de cerveja e no papo fácil de bar.
Agora, imagine um ponteado agudo e
ritmado. Uma zoada igual à produzida por um guarda-chuva com envergadura
robusta terminada em ponta metálica rija. Imagine que, numa calçada da vida,
esperando um ônibus que nunca vem, como descarga para a ansiedade, a gente
golpeie a calçada com a ponteira do guarda-chuva. Cria-se um ruído agudo,
sistemático. Se a gente acrescentar um caráter misterioso, uma franca
desconfiança e um medo discreto, este é o barulhinho que aqui em casa, vez por
outra, a gente ouve, vindo do apê vizinho.
A única certeza é que não vem do piso. Vem
da parede. Fosse o guarda-chuva, estaria apontado horizontalmente para a
parede. E tão incisivo e perceptível, que parece ser no nosso apê. Mas não é. E
não é forte não. Mas é cadenciado. Um toque-toque em sessões cuidadosamente
organizadas. Uma rajada. Pausa. Outra. Pausa. Semelhante à cantiga do galo,
acontece a qualquer tempo. Toque-toque-toque. Pausa... e assim por diante.
Apesar do incômodo, nos perdemos, aqui em casa, em especulações sobre a razão
deste pinicado na parede. Até manobras relacionadas ao manejo e despinte de
drogas ou outros artigos ilegais, a gente já imaginou. Alguém esculpindo uma
arte contemporânea. Uma patologia incontrolável de lascar o barro da parede
para comer. Já pensamos em tudo para desvendar a realidade deste ruído. Dentre
os cocoricós e zincricris, este toque-toque é o que mais estranheza causa aos
nossos corações e mentes. Tenho pra mim que vem do além.