quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

crônica remix - chita corrente

Corrente
Ana da dona Jucélia era dona do meu coração. Nos beijávamos beijos infantis, ao pegado das cercas de estacas ferpadas que separavam nossos quintais. Seu Paulo tinha um caderninho aonde anotava os “por conta” e os “em a ver”, com letras e números garrafais. Enedina era morena de cabelo escorrido e Roseana, miss. Piroró era neguinho oxítona e danado. O mais novo de 8 irmãos. O pai, Seu Três por Nove, vendia picolé e criou os meninos, sozinho, assim, vendendo o extra e o cremoso. Chita, toda vez que caía nas garrras da policia, tinha as unhas arrancadas. Depois, posto na rua, chorava. Um homem daquele tamanho, chorava na esquina da Lomas, de dor e humilhação. Era um ladrão doce.
Maria de Jesus me ensinou o beabá. Minha fascinação. Usava shorts prafrentex e me chamava de Pequenino. “Pequenino, já fez o dever?”. Um encanto de fessora. Tomava bença dela. “Pequenino, pra que lado é a perninha do a?”. Manoel Josafá era saliente. Ficava lá atrás, fazendo coisas, pensando indecências. Todo mundo sabia. Na hora da merenda, custava a se levantar. Ivo. Ivo via a uva. E...
Dona jarina via a princesa dentro da garrafa de água benta. Nas tardes quentes de agosto, se arrumava, pintava os lábios espessos, se enfiava em colares de contas. Sobrepunha um turbante de azul bem clarinho sobre os cabelos ralos. Chamava a gente da janela, dispunha a garrafa contra a luz e descrevia uma floresta encantada, com cachoeiras, pássaros, lajedos inclinados e, lá no fundo azul, a sereia. A rainha do mar. Eu vi dentro da garrafa.
Otávio já era grande e não sabia ler. Não tinha, porém, substituto na ponta direita do Internacional da Mauriti pra ele. Não fosse ter que bater marreta na construção da Casa do Bife, pra sobreviver, seria um grande jogador de futebol. O irmão variava da cabeça e à noite perturbava a esquina boêmia da Pedro Miranda com a Angustura. Assustava as meninas que batalhavam ali pelo Shangrilá, pelo Rosa Vermelha. Tinha uma voz agressiva. Quando se esquecia de tomar o Gardenal era recomendável guardar distância dele. Roubava toca-fitas de carro e não bebia. Nunca foi preso por roubo. Por desordem sim. Era um desordeiro empedernido. Irrecuperável. Já, Demerval, não. Este, de vez em quando caía. Não de graça. Resistia. Liderava refregas. Tinha um bando. Roubava carros. O corpo era todo marcado de bala. Umas cicatrizes arredondadas enegrecidas. Era imortal. O pai, caminhoneiro.
Tarcila cresceu rápido depois que teve papeira. Aos treze anos endoidava a molecada com um corpo de entontecer, uma faceirice, um odor primitivo, uma sensualidade abrasadora. Mas não queria os meninos da rua. Um dia um carro estacionou na frente da casa dela e perdemos Tarcila para um boy da Bailique. A mãe de Tarcila era mais bonita que ela. Enviuvou três vezes, continuou bonita e virou sogra de menininho rico.
Vitório pichava muro com frases contra a ditadura. Era franzino, usava óculos fundo de garrafa. Ninguém dava nada por ele. Era um guerreiro, porém. Tinha carisma. Atraía as pessoas. Conquistava seguidores com aquele jeitinho, aquele caminhar ensimesmado, aquele ar ausente. O que todo mundo desconfiava, era que ele vivia maquinando. Queria porque queria derrubar o governo. Certo dia, apareceu para uma reunião importantíssima, acompanhado de uma loura pra lá de bonita. Mãos dadas, troca de olhares (e ele que era tão disperso, atento a ela estava a cada instante). Era Natal. Era Ana da dona Jucélia. Entrariam para a clandestinidade depois da ceia e da reunião. Quando deu meia-noite, sumiram por um buraco na cerca que separava nossos quintais e meu coração explodiu. Bummm!



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