Corrente
Ana da
dona Jucélia era dona do meu coração. Nos beijávamos beijos infantis, ao pegado
das cercas de estacas ferpadas que separavam nossos quintais. Seu Paulo tinha
um caderninho aonde anotava os “por conta” e os “em a ver”, com letras e números
garrafais. Enedina era morena de cabelo escorrido e Roseana, miss. Piroró era
neguinho oxítona e danado. O mais novo de 8 irmãos. O pai, Seu Três por Nove, vendia
picolé e criou os meninos, sozinho, assim, vendendo o extra e o cremoso. Chita,
toda vez que caía nas garrras da policia, tinha as unhas arrancadas. Depois,
posto na rua, chorava. Um homem daquele tamanho, chorava na esquina da Lomas,
de dor e humilhação. Era um ladrão doce.
Maria
de Jesus me ensinou o beabá. Minha fascinação. Usava shorts prafrentex e me
chamava de Pequenino. “Pequenino, já fez o dever?”. Um encanto de fessora.
Tomava bença dela. “Pequenino, pra que lado é a perninha do a?”. Manoel Josafá
era saliente. Ficava lá atrás, fazendo coisas, pensando indecências. Todo mundo
sabia. Na hora da merenda, custava a se levantar. Ivo. Ivo via a uva. E...
Dona
jarina via a princesa dentro da garrafa de água benta. Nas tardes quentes de
agosto, se arrumava, pintava os lábios espessos, se enfiava em colares de
contas. Sobrepunha um turbante de azul bem clarinho sobre os cabelos ralos.
Chamava a gente da janela, dispunha a garrafa contra a luz e descrevia uma floresta
encantada, com cachoeiras, pássaros, lajedos inclinados e, lá no fundo azul, a
sereia. A rainha do mar. Eu vi dentro da garrafa.
Otávio
já era grande e não sabia ler. Não tinha, porém, substituto na ponta direita do
Internacional da Mauriti pra ele. Não fosse ter que bater marreta na construção
da Casa do Bife, pra sobreviver, seria um grande jogador de futebol. O irmão
variava da cabeça e à noite perturbava a esquina boêmia da Pedro Miranda com a
Angustura. Assustava as meninas que batalhavam ali pelo Shangrilá, pelo Rosa
Vermelha. Tinha uma voz agressiva. Quando se esquecia de tomar o Gardenal era
recomendável guardar distância dele. Roubava toca-fitas de carro e não bebia.
Nunca foi preso por roubo. Por desordem sim. Era um desordeiro empedernido.
Irrecuperável. Já, Demerval, não. Este, de vez em quando caía. Não de graça.
Resistia. Liderava refregas. Tinha um bando. Roubava carros. O corpo era todo
marcado de bala. Umas cicatrizes arredondadas enegrecidas. Era imortal. O pai,
caminhoneiro.
Tarcila
cresceu rápido depois que teve papeira. Aos treze anos endoidava a molecada com
um corpo de entontecer, uma faceirice, um odor primitivo, uma sensualidade
abrasadora. Mas não queria os meninos da rua. Um dia um carro estacionou na
frente da casa dela e perdemos Tarcila para um boy da Bailique. A mãe de
Tarcila era mais bonita que ela. Enviuvou três vezes, continuou bonita e virou
sogra de menininho rico.
Vitório
pichava muro com frases contra a ditadura. Era franzino, usava óculos fundo de
garrafa. Ninguém dava nada por ele. Era um guerreiro, porém. Tinha carisma.
Atraía as pessoas. Conquistava seguidores com aquele jeitinho, aquele caminhar
ensimesmado, aquele ar ausente. O que todo mundo desconfiava, era que ele vivia
maquinando. Queria porque queria derrubar o governo. Certo dia, apareceu para
uma reunião importantíssima, acompanhado de uma loura pra lá de bonita. Mãos
dadas, troca de olhares (e ele que era tão disperso, atento a ela estava a cada
instante). Era Natal. Era Ana da dona Jucélia. Entrariam para a clandestinidade
depois da ceia e da reunião. Quando deu meia-noite, sumiram por um buraco na
cerca que separava nossos quintais e meu coração explodiu. Bummm!
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