Clara
Um
desavisado se surpreenderia ao ver a alva figura num caminhar truncado, pelas
estivas esculhambadas da Pedreira. Mas os moradores do alagado, não. Irmã Clara
era visita desejada por uma quantidade assim de gente que se arrumava em
palafitas no entorno do Centro Social Auxilium.
Fez
parte, a freira alemã, do grupo que conduzia a pastoral das irmãs salesianas,
no início dos anos 80. Tive o prazer de partilhar várias ações com as religiosas
do Centro Auxilium. Cabe dizer que a interação não era muito fácil. Ao contrário
do colégio dos padres onde as atribuições de cada um eram diversas; as coisas
aconteciam, do outro lado da Alferes Costa, de um jeito bem divididinho. Lá,
cada irmã com a sua causa. Irmã Lísia cuidava do semi-internato. Firmina, dos
grupos de jovens, estas as freiras com quem eu tinha mais contato, principalmente
irmã Lísia, que me cuidava quando eu chegava por lá cansado e na broca, me
aviando um cumê e um alento embaixo do ventilador da cozinha. Mas conhecia
também a irmã-educadora que dava oficinas de empunhar redes, a
irmã-administradora, a irmã-diretora. Irmã Clara era a irmã-enfermeira e se
algum dia, o povo da Pedreira for escolher os nossos santos domésticos, irmã
Clara vai ter meu voto de prima, em caráter certo e irrevogável.
Certo é
que as irmãs priorizavam a ação pastoral intramuros, assim como os padres do
outro lado, adotaram a educação, como linha de evangelização. Natural então,
que a freiras cuidassem mais das urgências que se mostrassem ali, em seus
domínios. Instalações da escola, infra-estrutura, direção pedagógica inspirada
em D. Bosco, formação cristã.
Por
isso, quando um desavisado topava com irmã Clara varando as pontes da Pedreira
e Sacramenta, estranhava. Não era comum ver as filhas de D. Bosco na rua. A
vontade de Deus (acredito nisso), no entanto, aquela que subverte as
conformidades e regras, para nosso bem e ajudando bastante para o bem de toda
Santa Igreja, nos trouxe Clara, para os igapós.
Sempre
acompanhada, porque a idade adicionada a compleição germânica agigantada
exigiam cuidados, de uma ou duas meninas que ela mandava vir das Missões do Rio
Negro, irmã Clara percorria as passagens, os chagões mais escondidos aplicando
injeção, fazendo curativos, atendendo uma receita, prescrevendo um cuidado. Era
incansável. Dava o expediente na escola, mas se um chamado houvesse, não
contava conversa. Catava as meninas e se abalava. Muitas vezes era vista com
seu hábito alvíssimo desafiando a noite para completar uma dose, adiantar um
emplasto, realizar uma tapotagem num bebê catarrento.
Muito
articulada com os pares europeus, Clara, naquele tempo, conseguia com a freqüência e a quantidade
suficiente, medicamentos que até hoje a sistema de saúde pública do Brasil
peleja e não consegue, e se consegue, é daquela forma :falha aqui, ajeita ali,
falta acolá.
Irmã
Clara era a responsável, também, pelo suprimento de hóstias na celebração da
Eucaristia, inspecionava o sacrário, contribuía para a sobrevivência da
congregação como guardadora das sacolinhas que corriam o salão durante o
ofertório, arrecadando o facultadíssimo dízimo e às vezes não entendia as
novidades que nossa equipe de Liturgia inventava. Torcia o nariz, mas não
ralhava não.
Chegava
bem antes do início da Missa. Acendia as velas do altar, aprovava o vinho, o
bordado dos guardanapos, lustrava a patena. Sentava bem na frente e toda vez
que me via me chamava e dizia que tinha conhecido uma Sodré lá no alto Purus,
eu lhe sorria e pensava nas pontes e palafitas do bairro. No altar,“O Senhor
esteja convosco”. E a Missa começava.
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