Coração brisa
Na véspera de Natal, saímos, eu e minha filha, bem cedinho, a ‘andar Belém’. Mas foi bem cedinho mesmo, antes das seis. Pelo que os jovens nos mostram a cada dia, a alvorada não é, exatamente, um espetáculo natural da preferência deles. Pelo comum, o dia se realiza para a garotada, agora nas férias, após as 10, 11 da manhã. Mas naquele dia, a ordem foi subvertida e até com muito fervor e ânimo. Palmilhamos os canais da Pedreira, contemplamos o prateado do sol nascendo bem no declive da Itororó com a Pedro Miranda, ziguezagueamos pelo traçado triplo da grande avenida e baixamos para as docas do Ver-o-Peso, ainda com um vento friozinho do amanhecer nos tocando a pele e a alma.
Cumprimos o rito, no Veropa. Fizemos o desjejum com um completo de salgado e suco no JR, uma tapioquinha com café na tia, corremos à pedra pra ver a chegada de uns peixões pra lá de Tebas, nos perdemos pelos corredores aromatizados das erveiras, descobrimos escondidinhos charmosos na Ocidental do Mercado, serpenteamos na escada de ferro dos talhos restaurados, nos equilibramos caminhando bem na beirinha do calçadão que limita a doca do Piry.
Os barcos encostados, encalhados no seco da maré.
Adiante, no largo da Sé, nos solidarizamos com as mangueiras remanescentes e prestamos uma homenagem àquelas árvores maravilhosas que não resistiram ao último vendaval e nos deixaram apenas uma cratera entulhada de lembrança. Lamentamos, ainda, a ausência do cruzeiro, na parte central da fachada da igreja, também subtraído dali, pelo temporal. Descemos para o Forte e, depois de tantos anos com essa vontade, satisfizemos a curiosidade de chegarmos bem pertinho da grande parede. Mirei de palmo em cima os encaixes das pedras e a imensidão da muralha. Naquele momento, nos fizemos bem pequeninos, simétricos demais (nós que somos tão assimétricos), diante daquela construção de pedras quinadas e descompromissadas, na gênese, de coincidências angulares. É como a edificação das gentes, pensei: sem pré-determinações fáceis, confortáveis. Há de se ter o gênio, a audácia, a oportuna oficina da natureza para que se forje a construção humana. Somos quase muro, quase parede. Quase fortaleza, quase ponte, quase correntes, quase mar, quase terra, quase canhões, quase portões, quase rochas sobrepostas, quase pólvora, quase silêncio, quase explosão. A ordem nos diz que se nos construímos robustos para conquistar, também nos construímos arrogantes, para sermos conquistados.
A nossa volta para casa se deu pelo comércio. Resolvemos atravessar aquele mar de gente que se espalhava pela via dos Mercadores, para sentir de perto como acontece o fenômeno consumista do Natal. Não compramos nada. Não que não tenhamos nos entusiasmado com os pulsares pregoeiros. Eles são conquistadores. Dá até vontade de levar algo que a gente não precisa mesmo. Mas é que não rezamos na cartilha consumista. Resistimos, e reconhecemos que os espetáculos de convencimento do comércio são poderosíssimos.
Meu coração brisa saiu cedinho na véspera de Natal, para celebrar. Saiu acompanhado da minha filha, que é portadora e herdeira de mim. Quis que ela percebesse como eu me entrego pra esta cidade, como sou feliz com ela. E entendesse que, se vivo mais e melhor agora, ainda ela pode me ajudar na remissão dos meus pecados, na supressão da minha pavulagem. Sei que tenho débitos. Por eles peço perdão. Sei que com o meu charme e que engolindo uns grãozinhos de super-amendoins, posso vencer outras batalhas mesmo sem os perdões que me faltam, mas, reverentemente, rogo por eles. Para o ano, meu coração vai sair de novo ‘a andar’ Belém. Oxalá, mais leve, mais brisa. Feliz ano novo.
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