quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

crônica remix - plutão


De Plutão a Plutinho
Tanto que fizeram que conseguiram destituir Plutão do título de último planeta do sistema solar. Eu sabia. Sabia que o título não mais ia durar. A pressão tava demais. Tadinho.
Mas também, o zinho pediu para ser rebaixado.
Descoberto em 1930, o (ex) planeta das profundezas guarda em si características bem irreverentes. É um tiquinho de matéria, mas descabidamente galhofeiro.
Primeira, não é visível a olho nu. Anda por aí de flozô  sem que a gente, concretamente o perceba. Este fato contou muito para a sua queda. Não lhe foi possível o apoio popular. Ficou difícil mobilizar simpatias por uma coisa que a gente não vê. Estamos acostumados ao concreto, ao palpável. Como certificar um ente que não está ali para impregnar de luz, mesmo que discretamente, a nossa pupila? Plutão é produto dos segredos matemáticos, das peripécias do cálculo Newtoniano, das intimidades gravitacionais incompreensíveis para nosotros, pobres mortais.
Outra, o ex (ai que peninha!) planeta, tem uma órbita serelepe, anárquica. Enquanto os outros volteiam em torno do sol num traçado disciplinado, obediente (como se fossem petecas contornando os quatro cantos da superfície de uma mesa), o bonitinho viaja meio de ‘revestrés’. Se desenvolve num caminho inclinado com relação ao restante dos planetas (como se fosse uma peteca em trajetória cortando o tampo da mesa). A primeira lei de Kepler teria dado uma dor de cabeça a mais ao cientista se ele, à época, tivesse tido o prazer de conhecer Plutão.  E esta órbita subversiva, com certeza, inquietou bastante os bambambans da Astronomia, tão simpáticos às confortáveis similitudes do cosmos.
Depois, Plutão é um corpo celeste que está mais pra lá do que pra cá. É um ator da periferia solar. Gelado que só ele, perturba os confins do sistema e “faz fronteira com o infinito”. E, nos dias de hoje, quem, além da Regina Casé, dá trela para estas peças da periferia? Os nossos sisudos homens do comando, é que não.
E, por fim, a determinante característica do pobrezinho, aquela que balou o little planet do rol dos colunáveis. Era um planeta gitito. Taí, o mais contundente gracejo de Plutão. Tem o nome no aumentativo, desafiando protagonistas mais taludos como Júpiter ou Saturno. Mas é gito gito.
Creio, porém, que o principal motivo da saída de Plutão foi uma interpretação empobrecida, caduca sobre o que é democracia. Havia mais uns quantos astros na mesma situação de Plutão, que poderiam, também, ascender para o status de Planeta. Decidiram. Se não dá para os outros entrarem, não dá pra ninguém, e pluft, Plutão virou Plutinho. Reproduziram a máxima cruel aqui da Terra. Mais fácil sacrificar um, do que contemplar todos.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

crônica remix - a parede


A parede da memória
Estive aí pensando sobre a capacidade que a gente tem de lembrar das coisas. Acho que por causa do enredo daquela novela da Globo na qual a trama se desenrolava a partir do roubo de uma criança ocorrido em 1968 e (caramba!), uma pá de tempo depois, o rapaz, irmão  da bebê raptada, dizia lembrar de tudo, tintim por tintim . Égua da memória!
Eu, por mim, não teria esta competência, mesmo porque tenho uma capacidade reduzidíssima de guardar as coisas. Até eventos acontecidos na biqueira  do tipo  ano passado ou mesmo ontem de tardinha, já me são um sacrifício lembrá-los.
Aí, ante esta dificuldade, e como eu não tenho traumas
Catalisadores como o pequeno da novela, crio uns mecanismos, arranjo uns truques que me voltem à cena.
Vou, digamos assim, tateando créditos, fuçando evidências, embaralhando ficção e realidade, até que a história se mostre coerente, verossímil , daquelas que não tem errada.
E se, no final as coisas se encaixam é porque estão numa lógica. Assim, a história, qualquer que seja, pode até estar longe na memória, fugir um pouco da realidade e ter uma pitadinha de vontades diluídas no mar de nossas frustrações, mas não fica nem um pouco destrambelhada . E esta passagem, eu juro de pé junto que aconteceu.
Era uma noite umedecida pela chuva fina, lá pelos idos de oitenta e poucos. Mês de julho. A debandada para as férias em Mosqueiro esvaziara a minha turminha da tertúlia na New Wave e eu voltava sozinho para casa.
Ali na baixada da Pedreira, o alagado era um só. Eu tinha que saltear as passadas entre os caminhos de terra firme e os estirões de pontes mal cuidadas que iam desde a Itororó até os altos muros da Escola Salesiana.
Grilos cantavam afoitos, pirilampos animados iluminavam tufos alastrados de capim, sapos coaxavam roucos em homenagem ao pampeiro que desabara sobre a cidade desde a tarde e que àquela hora da noite era só uma garoinha.
Ninguém na rua, mas eu não tinha medo. Já estava acostumado àquela batidinha noturna.
Quando enfim, eu dei na esquina do Centro Auxilium, que susto! Uma nave enorme, de fuselagem reluzente e luzes faiscantes pairava sobre a solidão da Alferes Costa. Flutuava a uns dez, vinte metros de altura, no máximo. Estava bem pertinho de mim. Pela janela, dava até pra ver uns equipamentos de controle e alguns ET’s verdinhos tagarelando e apontando insistentemente para mim. Explodi apavorado: “Égua, moleque, é o Chupa-chupa!” Depois as luzes foram ficando mais fortes, mais fortes, eu ficando encandeado, as luzes ofuscando tudo em volta, eu fui saindo de mim, me entregando a umas sensações estranhas...Depois, os sentidos sumindo...Sumindo...
Fui abduzido.
Isso aconteceu há pelo menos uns vinte anos. A minha memória, como disse, não é lá essas coisas. Então, que fique claro: a cantoria dos grilos e sapos, os pirilampos animados, os muros altos da Escola Salesiana, o alagado da rua foram mentirinhas criadas para apimentar a história. A solidão  da rua, as luzes faiscantes, uma reação apavorada e tudo o mais, são a mais pura verdade. A absoluta verdade. Juro.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

crônica da semana - olhos gegel


Olhos acesos


A nossa evolução é também, uma questão de escala. As distâncias se encurtam conforme a gente vai crescendo. Um retorno à época em que o bairro do Souza era o lugar mais longe que a gente podia ir afirma esta suposição. Na real, percorremos o tempo estreitando os espaços. Varamos a infância visitando descampados sem fim, nos entregamos à adolescência e sonhamos ultrapassar os limites das veredas e dos sonhos; quando jovens, a nossa envergadura já se destaca, abarcamos e dominamos estirões e artes, antes distantes. Nos integramos e nos destacamos na mesma escala da paisagem ao redor. O mundo imponderável e frio fica mais perto. 
Este conflito e, ao mesmo tempo, este acerto de contas que temos com o espaço, é o que me chama a atenção agora, quando meu filho Argel de Assis completa 17 anos. 
Em contrapartida, é natural que para ele, as coisas e alguns sentimentos tenham se distanciado. A reclamação do pai ao largo, a exigência da mãe juntinho, o tamanho da cama de dormir, o interesse pelo lar, a preocupação com horário, o apego à bola jogada no quintal de casa. Não se abate mais ante medos justificáveis, pudores exigidos ou desafios custosos. O menino cresceu e ambiciona este mundo severo, inclemente, todo dele. 
Não se permite mais aninhar-se (embora eu reivindique isso) ao colinho do pai como na terça de carnaval em que me chegou aos braços com aqueles olhos de mel acesos e curiosos (como se houvesse nascido de olhos abertos tal qual um dos fantásticos Buendía do García Máquez). Nos apartamos, no tempo e no espaço, nas causas e razões, daquele momento extraordinariamente feliz em que abracei meu bebê pela primeira vez. 
Hoje, quando ele já apresenta uma barba discreta, mas harmoniosa e constante, no rosto, nossas pelejas são menos românticas. O mundo concreto está aqui, perto de nós (não se contraiu?) e exige que tenhamos uma conversa de homem pra homem. 
O bebezinho que puxava a toalha de mesa e trazia de tudo em quanto ao chão, agora, olha as coisas de cima, e até com aquela indelicada presunção que a idade abona. Ao mesmo tempo reza na cartilha da prudência, da responsabilidade. O mundo que anseia é medido e analisado, percebo isso e confio. 
Reconheço que há um quê de racionalidade nas atitudes dos nossos filhos, atualmente. E isso nos traz uma certa tranquilidade. Vejo no meu rapazinho, comprometimento, lealdade com ele mesmo. Há alguns anos, resolveu ser atleta. E eu nem queria falar isso agora, para que ele não se encha de pavulagem, mas admiro o caráter desta escolha. Optou por uma vida disciplinada, fiel aos objetivos. (Às vezes, tiro uma graça, faço uma pilhéria sobre o comportamento dele, sugiro um deslize, uma peripécia, uma transgressão, e de pronto me derruba com um argumento poderoso: “sou atleta, pai, tenho que me cuidar”). 
Entendo (oxalá esteja errado) que esta disposição, o estilo de levar a vida em livre escolha, indica também uma perigosa autoconfiança. Mas tô aqui, ó, só tareando, reparando nos movimentos. Tentando frear os exageros nas vitórias e os destemperos nas derrotas. Cuidando, aconselhando (ihhh, disse a palavra proibida), apontando os defeitos com sutileza, e pontuando as virtudes comedidamente. E eu aqui, o pai, me orgulhando deste meu amigo muito bacana que caminha para conquistar o mundo futuro que se aproxima. Esta crônica não é um recado criptografado, nem um velado sermãozinho. É um carinho chatinho, que faço no meu bebê e um desejo que, aos 17 anos, ele seja um personagem criador, generoso e que encare a vida livre de olhos acesos, como naquele nosso primeiro encontro. 


crônica da semana - olhos gegel


Olhos acesos

A nossa evolução é também, uma questão de escala. As distâncias se encurtam conforme a gente vai crescendo. Um retorno à época em que o bairro do Souza era o lugar mais longe que a gente podia ir afirma esta suposição. Na real, percorremos o tempo estreitando os espaços. Varamos a infância visitando descampados sem fim, nos entregamos à adolescência e sonhamos ultrapassar os limites das veredas e dos sonhos; quando jovens, a nossa envergadura já se destaca, abarcamos e dominamos estirões e artes, antes distantes. Nos integramos e nos destacamos na mesma escala da paisagem ao redor. O mundo imponderável e frio fica mais perto. 
Este conflito e, ao mesmo tempo, este acerto de contas que temos com o espaço, é o que me chama a atenção agora, quando meu filho Argel de Assis completa 17 anos. 
Em contrapartida, é natural que para ele, as coisas e alguns sentimentos tenham se distanciado. A reclamação do pai ao largo, a exigência da mãe juntinho, o tamanho da cama de dormir, o interesse pelo lar, a preocupação com horário, o apego à bola jogada no quintal de casa. Não se abate mais ante medos justificáveis, pudores exigidos ou desafios custosos. O menino cresceu e ambiciona este mundo severo, inclemente, todo dele. 
Não se permite mais aninhar-se (embora eu reivindique isso) ao colinho do pai como na terça de carnaval em que me chegou aos braços com aqueles olhos de mel acesos e curiosos (como se houvesse nascido de olhos abertos tal qual um dos fantásticos Buendía do García Máquez). Nos apartamos, no tempo e no espaço, nas causas e razões, daquele momento extraordinariamente feliz em que abracei meu bebê pela primeira vez. 
Hoje, quando ele já apresenta uma barba discreta, mas harmoniosa e constante, no rosto, nossas pelejas são menos românticas. O mundo concreto está aqui, perto de nós (não se contraiu?) e exige que tenhamos uma conversa de homem pra homem. 
O bebezinho que puxava a tolha de mesa e trazia de tudo em quanto ao chão, agora, olha as coisas de cima, e até com aquela indelicada presunção que a idade abona. Ao mesmo tempo reza na cartilha da prudência, da responsabilidade. O mundo que anseia é medido e analisado, percebo isso e confio. 
Reconheço que há um quê de racionalidade nas atitudes dos nossos filhos, atualmente. E isso nos traz uma certa tranquilidade. Vejo no meu rapazinho, comprometimento, lealdade com ele mesmo. Há alguns anos, resolveu ser atleta. E eu nem queria falar isso agora, para que ele não se encha de pavulagem, mas admiro o caráter desta escolha. Optou por uma vida disciplinada, fiel aos objetivos. (Às vezes, tiro uma graça, faço uma pilhéria sobre o comportamento dele, sugiro um deslize, uma peripécia, uma transgressão, e de pronto me derruba com um argumento poderoso: “sou atleta, pai, tenho que me cuidar”). 
Entendo (oxalá esteja errado) que esta disposição, o estilo de levar a vida em livre escolha, indica também uma perigosa autoconfiança. Mas tô aqui, ó, só tareando, reparando nos movimentos. Tentando frear os exageros nas vitórias e os destemperos nas derrotas. Cuidando, aconselhando (ihhh, disse a palavra proibida), apontando os defeitos com sutileza, e pontuando as virtudes comedidamente. E eu aqui, o pai, me orgulhando deste meu amigo muito bacana que caminha para conquistar o mundo futuro que se aproxima. Esta crônica não é um recado criptografado, nem um velado sermãozinho. É um carinho chatinho, que faço no meu bebê e um desejo que, aos 17 anos, ele seja um personagem criador, generoso e que encare a vida livre de olhos acesos, como naquele nosso primeiro encontro. 

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

crônica da semana - Quarta feira de chuvas


Quarta-feira de chuvas

Hoje, vou arriscar um teretetê sobre o alagamento da cidade, na Quarta-feira de Cinzas, porque, olha, há anos não via o canal da Pirajá pirar e abandonar seu tranquilo leito. Fazia muito tempo que não arregaçava a perna da calça pra varar esta baixa pedreirense, mas quarta-feira, não teve bom não, reinou o bloco da chamichuga na passarela da Aldeia Cabana. 
A aporrinhação do alagado acabou por me restaurar curiosidades antigas. Vivo me batendo com essas peripécias da natureza, aliás, muitos dos meus amigos me inserem numa escala que vai de assim, assim, estranho a completamente tantam; uns e outros me classificam como um neguinho metido a besta por querer saber coisas que não me pertencem e por querer dar causa aos nossos sofrimentos urbanos; e, por fim, outros tantos, me ignoram completamente, quando me vêem fuçando nisto, naquilo ou naquil’outro. É verdade, fico na cuíra mesmo, ainda mais agora, neste período do ano. É tempo de luzinha acesa e atiço esta minha mania de querer entender os entrementes que envolvem sol, lua, chuva, marés, equinócio... Dia desses mesmo publiquei uma crônica explicitando minha preocupação com esta variação (mínima, diga-se) climática que temos aqui na Amazônia. Mas não sou metidão não, nem aluado. Penso que existem formas de interagirmos com a natureza e os dois sairmos ganhando. Para isso, a gente lança mão do que nos é possível, ou vocês acham que na Quarta, eu não fiz todas aquelas mandingas (bonequinhos de papel pregadinhos uns aos outros, um sol desenhado no alpendre, copo com água emborcado sobre pano de prato virgem) aqui em casa para a chuva parar. Fiz a minha reza, também, ora se não fiz. Precisava sair para o mundo, para a lida como todo cidadão. No entanto, além das místicas, urge recorrer às ciências. A Engenharia, a Astronomia, a Meteorologia devem ser consultadas. Perceber como estas artes se relacionam e procurar subsídios nelas para subjugar às origens este mar que se formou nas margens do igarapé do Galo e se elevou até a Praça Eneida de Moraes é uma missão que o povo do meu bairro tem que requerer e perseguir. 
Ano passado mesmo, ensejado na minha insatisfação, escrevi sobre o transbordamento do Galo (que ocorreu na terça de carnaval). E não é preciso nem ter ginásio para ligar uma coisa com a outra, este com o outro ano, para contar com as possibilidades, para fazer um pequeno exercício de recorrência, considerando a interferência das marés de Equinócio, a ocorrência da lua Nova, as deficiências de operação das comportas. Admitindo, até, o calendário cristão que é o que define a data do carnaval. Basta dar um trisca na história meteorológica de Belém, para fazer uma previsão realista de riscos para a cidade. Reconhecendo e conhecendo estas particularidades dos primeiros meses do ano, penso que um planejamento estratégico reduziria e muito os desconfortos pelos quais passamos. Pena que uma prática de prevenção, ainda é uma ferramenta de propaganda. Divulgam o explícito, o óbvio, mas o que realmente ajuda, fica nas gavetas. Na crônica do ano passado, como curioso, alertei que havia muito mato, até árvores grandes no leito do Galo e que isso claramente interferia na vazão do igarapé. E se a gente passar lá hoje, ó, tá do mesmo jeitinho. O Galo encoberto por uma robusta floresta. 
Falo da Pedreira porque é o meu bairro e é uma das mais bem sucedidas experiências nas obras de macro-drenagem. Mas esta Quarta de Cinzas e de chuvas foi de muito aperreio para boa parte de Belém. Tanta curiosidade, tantas ciências, mandingas e rezas, gente habilitada...e tudo dando água. 

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Crônica remix - A carne vale


A carne vale (ou o Mardi gras deles lá)
Este ano o meu carnaval foi todo na Cidade Velha. Cumpri o rito. Cordão do peixe-boi, Fofó do Elói e uma animada caminhada exploratória pelos segredos do entorno (culinários, inclusive). Confesso, porém, que bati perna atrás da bandinha bem pouco. A minha base foi ali, na praça do Carmo. Pertinho do busto de D. Bosco. Ali, entre um passinho escaleno de samba e outra obtusa tentativa, matutava:
Vivendo e aprendendo, né. Trago lá do “Bom dia” do padre Lourenço, na Escola Salesiana do Trabalho, o significado do carnaval.
Novesfora uma confusãozinha por causa de uma inglória morrinha contra o sol desafiador da manhã, ali, cedinho, na quadra da Escola, a festa de carnaval seria como um descarrilamento proposital de nossas, digamos assim, regras comportamentais. É a festa das permissões (por isso tantos lábios masculinos tingidos pelo mais alarmante carmim), dos intentos desprovidos de senso, do sorriso indecoroso, da coragem desmedida (boca pintada, saia rodada, corpete apertado, perna cabeluda e o nó na goela. Pode. Tudo pode no carnaval).
A festa tem este caráter mesmo de transbordamento, de inclinações libertinas, de prazer total exatamente por estar atrelada ao calendário cristão e por anteceder o tempo de contrição e penitências que se realiza na quaresma. Nos primórdios este clima foi associado ao esbanjamento, aos prodigiosos costumes. Como na quaresma a tradição prega a abstinência dos prazeres, da voz aguda, da carne (de pentear o cabelo e de varrer a casa), os dias que antecedem o compromisso de fé compensam a privação. A carne, então vale. Até a quarta-feira de cinzas, “a carne vale...Carnevale...Carnaval”, arrematava o fundador da EST.
Aqui pra nós, porque lá para o povo de Nova Orleans, é Mardi gras. Tem esse nome por causa do dia mais foguento do carnaval que é a terça-feira gorda, dia inspirado no folguedo parisiense antigo, que por matreiro que era, destacou-se como o vovozinho do carnaval moderno (um conceito, um jeito de ser feliz que acabou por dar um outro sentido para a palavra carne, aquela lá de cima, de ‘carnevale’, e que para nós quer dizer...Bom...Vá lá que seja, quer dizer pés em carne viva por causa de três dias de samba e de ginga).
Os americanos desfilam na avenida até com alguma alegria, mas divertem-se movidos por estranhezas e embaraços: esmeram-se em distribuir colares de contas para as garotas e em troca pedem que elas lhes mostrem os seios. Embaraçam-se em algumas centenas de cordões, penitenciam-se carregando um peso danado só para sair trocando bijus de continhas por uma espiadela. Esses americanos me arrumam cada presepada!
O carnaval é um divertimento antigo, mas todo ano a gente se ‘apatralha’ com a data. Às vezes, é vupt, logo nas calendas de fevereiro, outras vezes vai dar lá nas águas de março. A data varia porque tem uma continha chata na parada. Como é uma festa ligada ao cristianismo, é subordinada ao calendário eclesiástico. E tem como referência a Páscoa, que é uma celebração com data variável (a Páscoa ocorre no primeiro domingo após a primeira lua cheia que acontece depois do equinócio. E por aí a gente tira. Dei uma pesquisada e vi que o equinócio este ano vai cair no dia 20 de março, a primeira lua cheia a partir dele será no dia 30, daí então é só...Ah, quer saber, eu vou é consultar a folhinha do ano pra saber quando é a Páscoa. Eu não falei que a conta era chatinha).
Entretanto, é bom se agendar para os dias gordos e para, na sequência, receber as cinzas com aquela cara mais deslambida do mundo. E tomar termo e procurar se emendar porque a essas alturas do campeonato já “acabou nosso carnaval”.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

crônica da semana- tua graça


Segundo andar

A gente, toda vez que acabava a aula de Educação Física, ficava por ali, espiando as meninas na hora delas. Era uma resposta que a gente dava àquela explosão de hormônios, àquela mensagem ancestral de que devíamos atentar, seja por curiosidade, seja por desejo, para aquele gracioso serzinho da nossa espécie. 
Naquele dia, fiquei peruando o vôlei. Aquela garota bem mais crescida que as outras, pele rosada e cabelos ligeiramente avermelhados, me tirava de rota com aquele brilho concupiscente. Quente. Há dias que eu encostava ali, no corredor que dava pra  quadra improvisada no terreiro, apreciando aquela estrela  fulgurar num lado, n’outro da quadra de terra batida e capim ralo, admirando o jeito que ela passava a bola de manchete... 
Para a minha incontida alegria, no fim do jogo, ela me sorriu um sorriso amigo e disparou a pergunta: “qual é a tua graça?”. Por vários motivos, não respondi a pergunta, mas não dei uma volta mesmo, porque eu lá sabia o que ela queria dizer com aquela frase. Graça? Qual a minha graça? 
Sabia que ela era da oitava. Eu era da sétima. Éramos do turno da tarde e fazíamos Educação Física pela manhã. De tarde, com o uniforme tradicional, sapato boneca (com meias soquetes duplas, para engrossar as pernas), saia plissada, tirando a estatura um isso além da normal, não chamava atenção. Era uma menina como todas as outras, que comia a unha do unheiro com bastante pimenta, acompanhada de um chope nem tão mole e nem tão duro, de frutas artificiais e que tinha uma embalagem plástica rija que o chopeiro cortava com a gilé. Na hora do recreio, dava umas carreiras no corredor empastelando o futebol jogado com cacos de lajota e voltava pra sala fedendo só a moleque. Mas só com a turminha da oitava. Nessas presepadas mais libertinas, não se misturava. Cuidava de ter a conivência e estar protegida pelos seus. 
Não sabia qual era a minha graça e nem sei até hoje como, um tempinho depois do nosso encontro à saída do jogo de vôlei, e adiante àquela desconcertante pergunta que eu não soube responder, estávamos atracados ao pegado do muro do Bosque. 
Por aqueles dias, para nós que estudávamos no Jarbas Passarinho, Tudo que não era na frente, na Almirante Barroso, era atrás do Bosque, mesmo que fosse o lado da 25, da Lomas, da Perebebuí. Os nossos tórridos momentos se deram naquele estirão da Perebebuí.  Do perímetro do Bosque, era o que tinha menos movimento àquela hora e nem tinha casa por lá. O quarteirão era dividido entre os zunidos das bombas da Cosanpa, e os sussurros sofridos dos pacientes do Hospital Juliano Moreira. 
Foi um presente dos deuses, aquela pequena me dar ibope. Ela, já foi dito, era de uma belezura, uma docilidade. Tinha uma coisa que inebriava (acho que aquela postura natural, não intencional, de mulher grande, sedutora, perturbadora). 
Mas tô procurando interpretações e causas, agora, porque naquele dia, destrambelhei, entonteci. Subi aos céus e não dei mais para os meus pés aqui na terra. Amei, com a ingenuidade que se ama quando a gente tem 13, 14 anos. E com muitas, e isso eu recordo benzinho, muitas restrições. Frases ensejadas me freavam, me barravam as mãos. “Te aquieta, te aquieta...”. 
Tornei aos meus pés, quando a molecada começou a passar para o intermediário e as vaias rolaram. Eu havia sobreposto alguns tijolos que tinham dado lugar a um buraco no muro, e subido neles para poder alcançar a minha pequena, porque eu era pequenininho, mirradinho mesmo. Da rua, os moleques caçoavam da situação. 
Qual a graça? Estava no segundo andar. Qual a minha graça? Até hoje, não tenho a resposta. 

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Foto do meu amigo Hélio Santos para promover meu livro "O rio do meu lugar" a ser lançado este ano, em Abril


sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

crônica da semana - duas estações


Duas estações

A coisa tem uma formalidade cartesiana. Todo ano é assim: varamos um mês de julho escaldante, mas aí como tem as férias, o bucolismo do ‘interlan’ paraense, a gente nem Seu Souza, não liga. Ficamos vexados mesmo é com o calor de esturricar humores, em agosto e setembro. Mais com pouco, em Outubro, a chuva vem miudinha, discreta, só pra umedecer o caminho da Santa, só pra fazer minar as mangas nos cachos das mangueiras que desenham os túneis verdes de Belém. Novembro é aquela espera, ainda afogueada. Dezembro tem aquela garoinha que não pode faltar, no dia de Natal e uma certeira, na batida da campa do ano: um pampeiro para encharcar entusiasmos na festa da virada. Daí que de Janeiro em diante, é água, maninho. Eis um breve histórico, de como chegamos num momento como este, em que  amanhece e anoitece o dia chovendo. 
Se a gente for dar reparo, o ano já se inicia com uma queda brusca na temperatura média. O mormaço diminui, já não temos aquele pavor de fim de tarde com nuvens altas e escuras nos abicorando na saída do trabalho e despejando estrondos e coriscos variados bem do ladinho da gente. O céu adquire uma tez mais suave, as nuvens são mais constantes e calmas, parecem algodões molhados passeando pra’li e pr’aqui sem cerimônias, sobre nossas cabeças, e sempre e indecorosamente, em tempo de arriar. O horizonte se mostra com aquela deliciosa textura de sorvete de bacuri e, não fosse, pela lida diária no trabalho ou o compromisso com a escola, ora se a gente não segurava mais umas horinhas na cama só aproveitando o ventinho que entra pela fresta da porta. Aqui, ali, o sol aparece. E quando aparece, dá o desconto. Como acostumamos com o tempo nublado, quando o sol dá as caras, parece que vem mais quente. Se a gente for ali à porta da rua, sem camisa, apreciar o movimento, a costa logo arde. Tudo arde e com uma intensidade desesperadora. A sombrinha nessa hora, tem também, um sentido na vida da gente, além daquela serventia usual de ser perdida num balcão de farmácia, no banco do ônibus, no caixa do supermercado... 
Hoje, enquanto escrevo esta crônica, o tempo tá assim, nublado, chuvas salteadas e um solzinho ardoso se enxerindo de vez em vez. No estaleiro, tento resistir a um dos males comuns neste período: a gripe acompanhada de seus mais implacáveis sintomas. Embora desconfortável e trazendo esta panema que nos derruba, este panorama úmido é a cara de Belém. Dos ciclos que o ano nos apresenta, este cenário regado à coriza nos identifica como resistentes habitantes desta faixa, exuberante e pouco entendida do Globo. Nos adaptamos. Como diz meu amigo Paulo Sérgio, nessas horas, meia cibalena, uma colher de mel com copaíba, um escalda-pé e tudo se ajeita. Vai embora a constipação. E é uma adaptação que impõe até transes conceituais. Ninguém consegue definir ao certo em que parte do calendário climático, estamos. Alguns dizem ser ‘inverno’, simplesmente. Outros qualificam: ‘inverno dos paraenses’. Uma parcela assim, assim, vanguardista lança mão do cientificismo pagão da Super Interessante: ‘verão chuvoso’. 
Não concordo com nenhuma dessas classificações. Todas têm um pecadinho em si, seja a redundância, seja a discrepância. 
(Vou lançar uma campanha para a escolha do nome de nossas duas estações. Taí, nesta afirmação, tenho acordo com o que se fala. Temos somente duas estações. Uma que chove um nadinha e outra que chove pra caramba. Já tenho os meus nomes. Para os primeiros seis meses “Estação das chuvas e dos rios têi têi”. Para os seis meses seguintes, “Estação do sol de rachar e dos rios poeirando”. Que tal?).