terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Não vou sair, não vou deixar este lugar

Hoje, é bem mais fácil de entender. Abro o Google Earth e num instantinho reconstruo a viagem que fiz desde os férteis barrancos do rio Acre até a indefinida foz do Amazonas. Na imagem, revisito os retorcidos rios ocidentais; a inesgotável bacia hidrográfica; o sufocante estreito de Breves; a imensidão marajoara; a mansidão do Arrozal; os acintosos espigões; a simetria britânica e a perdoável arrogância das torres do mercado de ferro do Ver-o-Peso...  Belém.
A baía do Marajó nos deu as boas vindas com um furioso banzeiro que levava o Domingos Assmar a uma perigosíssima coreografia alternando-se em audaciosas inclinações a bombordo, a estibordo. E a gente enjoando, se desesperando. Mamãe cuidando. Acalmando. Até que, impotente diante da forças das águas, nos juntou os quatro pequenos no camarote e nos uniu em fervorosa oração.
Deus sabia que queríamos ser paraenses, e quando ouvimos a quebradeira do mato, quando sentimos o ronco dos motores suavizar-se num surpreendente desafogo, quando percebemos um deslizar cômodo e seguro sobre o tapete líquido do furo do Arrozal, paramos de chorar, e nos abraçamos felizes com a certeza de que chegaríamos naquela Belém que mamãe tanto falava. Naquele lugar mágico margeado por florestas, rios grandes, sonhos e desejos. Naquela terra prometida em que reconstruiríamos as nossas histórias e reinventaríamos a vida longe das ruas de seringa e dos enlatados imperialistas.
(A mais determinante seqüência, desde a partida naquele batelão de linha, lá no Xapuri, que trago na memória é esta: a saída daquele furor líquido da baía do Marajó, a reconfortante estaladeira de mato, a calmaria do Arrozal e... As torres do Ver-O-Peso).
Se alguém um dia me pedir para definir Belém, não vou ter dúvidas. Belém é a minha bonança. A minha paz.
Tudo conspira, né. Todas as circunstâncias contribuíram para que eu admitisse que Belém seria a minha redenção, o meu fim, o meu desprendimento, o meu suspiro de alívio (depois daquele frenesi, na baía do Marajó,  então, Belém foi uma graça alcançada).
Desembarcamos no galpão Mosqueiro-Soure dizendo “é aqui” nesta beira de rio.
E foi mesmo. Meus momentos mais marcantes da infância, da adolescência, da juventude e agora, já fazendo a rima com o ‘enta’, foram sempre à margem desta baía.
Um beijo, um porre, um pensamento mau, um dinheirinho suado, uma desilusão, um assombro, um arrependimento, uma despedida, um reencontro, uma poesia, um palavrão, uma maldição, meu bem, meu mal, minha indiferença, o pôr-do-sol, o luar, a cachaça de Abaeté, uma nota no violão, a chuva fina, o amanhecer, os olhos farinhados de sono, as pimentas coloridas e o verde das folhas orvalhadas pela madrugada, o mistério das ervas, o imprevisível humor das ondas que às vezes vão buscar a gente lá longe, a brisa amiga e refrescante no final da tarde, a minha saudade e o sal das minhas lágrimas que rolam agora sem embaraço nenhum...
Certa vez, depois de algumas adaptações, e um casamento perfeito, debandei. Passei dez anos vagando por aí. Trairei Belém. Me apaixonei por Porto Velho, tive um caso quase que irreparável com Altamira, me iludi com os apelos calientes de  Manaus, destrambelhei completamente por Macapá. Mas um dia... Um dia voltei aos aconchegantes braços da minha cidade.
E daqui, não saio mais.
Na beira deste rio quero descansar. Um dia (não agora, ainda não) atendendo a um convite irrecusável da natureza, o que restar de mim, “é aqui” que gostaria que repousasse para sempre. Quero me misturar às águas deste rio e virar maresia, maré cheia, Acará, Guamá, Guajará...

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