A alma papa chibé
Tenho
pra mim que atualmente o traço mais forte da cultura paraense é notado pela arte
da gastronomia. Esses dias de chuva, até inesperados durante todo o mês de
dezembro, me prenderam em casa de confronte à TV e aproveitei para maratonar
algumas séries que tratam a culinária amazônica de uma forma diversa e
enriquecedora. Aprendi um pouco sobre a Vinagreira e o protagonismo que tem na
origem do Arroz de Cuxá, estrela da criação maranhense; como também me
esclareci quanto a dúvida eterna para notar a palmeira santa, aquela da qual
tudo se aproveita nesta beira de rio que nos abriga (buriti ou miriti?). Estou
conformado de que o nome, vai da gente.
Em
Abaeté é famoso o mingau de Miriti, cedinho, na feira. Já no meu tempo de
Escola Técnica, fazíamos uma recreação a base de muita viola e recitação de
poemas, embaixo dos Buritizeiros que dominavam o entorno dos laboratórios de
Edificações e Eletrotécnica, que não eram outros senão os ditos pés de Miriti.
E
se há dúvida, vamos resolver outras paradas serenamente.
Como
é o chibé de vocês? Somos tidos e havidos como consumidores de chibé. Penso, no
entanto, que há uma variação na composição desta mistura. Vou logo adiantando
que acreaninho que chega a terras outras, adapta e ajusta o di cumê conforme o
gosto. Por mim, aprendi como sendo um composto de água, farinha, açúcar e
consumido sozinho, no chupado da colher, sem nada acompanhando. Conheci outras
combinações: aquela reduzida à farinha com água ou uma outra unindo as mesmas duas
partes acrescidas de um acompanhamento salgado (carne, camarão, charque).
Tenho
a impressão que o papar chibé, hoje em dia, não é mais um costume que delega.
De certo, há tempos não rola aqui em casa e pela casa dos outros também não
tenho notícia. Não vi nada sobre esta tradição nas séries que maratonei por
esses dias plúmbeos. Fica a dica para os chefes de cozinha retomarem a tradição
com um gurmezinho simpático, que seja. Que tar, esse menino?
E
os nossos chefes (ou chefs), heim, vamos respeitar. Estão cortando e arando.
Acompanho o trabalho de alguns e admiro a opção que fazem em estabelecer
práticas culinárias elaboradas, aqui mesmo, em solo paraense. O que nos dá
experimentar a nossa cozinha do dia a dia, de forma diferente, com aqueles
toques de talento que eles são capazes de realizar. Daí, um tucumã, que a gente
tá acostumado a riscar com os dentes e a pupunha quentinha da tarde, passam a
incrementar molhos, caldinhos, purês e alteram nosso modo de ver e de comer de
tal forma que a nossa estima aumenta, que o nosso entendimento sobre
potencialidade e diversidade de sabores se eleva. Além de nos pegar pela boca,
os criadores harmonizam os espaços e o atendimento. Temos restaurantes em Belém
que capricham na decoração, recriam o ambiente ribeirinho ou os escondidos dos
arrabaldes, o clima... Reinventam um salão de recepção aconchegante como que
esperassem o cliente para roer um tucum. O objetivo é deixar a visita à vontade
(até mesmo no embalo da rede), identificada com o local. Os proprietários incentivam
o uso de uma linguagem rés o comum dos dias, fazem vídeos, divulgam receitas e,
não raro, nos convidam ao final de cada apresentação: bora dá-lhe!
Em
um dos episódios que vi esse mês, o chef Léo Modesto me encantou com o jeito
que preparou uma poqueca. Manejava os ingredientes, envelopava o peixe nas
folhas da bananeira com uma leveza, com uma sabedoria, com um respeito, de tal
maneira que parecia se entregar a um transe, a um diálogo com os elementos que
manuseava. Um discurso ancestral, um suspiro ligeiro de humanidade ante a
condescendência divina da natureza. Manejos de tamanha devoção que inspirou um
enredo ritualístico, uma celebração. O ato sagrado de cozinhar. Que me faz...
pensar, orar, além de... ficar com água na boca. Vou já é ali, com alma e com calma, ajeitar um chibé é que é.