O que pede o coração
Toda
vez que vejo o Almir Sater, lembro do meu amigo. É que são muito parecidos. No
jeito abandonado, na calma dos gestos, da voz. A aparência também. Meu amigo
tinha aqueles olhos castelhanos algo tristes. A viola fecha as parecências. Foi
vendo meu amigo tocar que conheci o som de Almir Sater e as versões autênticas
das modas de viola, as variações estilísticas, a toada raiz de Tonico e Tinoco,
a plangente levada de Pena Branca e Xavantinho, os incríveis versos populares
que rompiam a barreira dos rótulos e das regras ... “Peguei, soltei, chacoalhei,
guardei/tornei pegar, chacoalhar, guardar/Pra depois ponhar no mesmo
lugar/Ah... vida minha”.
Semana
passada, assistindo a uma reprise do programa Balaio, com o cantor, compositor
e ator Almir Sater, na TV Cultura, dei conta que nunca mais tive contato com o
meu amigo.
Geólogo
de ponta, nos conhecemos em Rondônia. Naquela atmosfera produtiva, se destacava
porque fazia ciência, ali no meio da pressão que a atividade mineradora exige.
Éramos muito jovens e nas horas de folga, botávamos pra chulear. Paulistano
clássico, sãopaulino, amante dos Beatles, Rolling Stone, conhecedor da Lira
Paulistana, fazia solos fenomenais no violão. Logo me dei com ele e nos embolamos
em combinas, tínhamos coisas pacas em comum.
Depois,
veio pra Altamira fazer a Geologia das áreas de empréstimo para os projetos da
Eletronorte e me resgatou de Rondônia para trabalhar com ele. Usou de toda a
generosidade dele para grafar meu nome na capa da dissertação de mestrado que
produziu sobre os terraços fluviais do Amazonas. Foi um período de muito
aprendizado, de uma convivência cúmplice e de admiração mútua. Tivemos um
contato mais próximo porque ficamos mais tempo no campo. Aí é que a gente vê os
detalhes. De comportamento, de humor, de iniciativas. Sempre partilhávamos
ações e precisões. Em uma ocasião, nos perdemos na mata. E olha, naquela época,
dar mole ali na margem direita do Xingu, era meia bronca. Não havia infra, a
região era praticamente desabitada. Era só mata, rio e céu azul. Quando nos
perdemos entendi a mansidão daquele espírito. Não desesperou. Seguiu o
protocolo. Buscou um curso d’água, me orientou na direção da jusante pela Regra
dos Vês e depois de uma boa caminhada, estávamos achados.
Ainda
no campo e também sobre aquela capacidade enorme de concentração que ele tinha,
vale destacar nossa força tarefa para sustentar o maldito vício do cigarro.
Como não tínhamos período certo de campo, às vezes nosso pacote de cigarros
acabava e longe da cidade, tínhamos que pirangar com a peãozada o fornecimento
de uns saquinhos de fumo trevo e alguns livros de abade. Eu, na ira do vício,
tecia o meu cigarrinho todo troncho, todo babado, colocava um filtro de algodão
e fumava logo. Ele não. Tecia devagarinho, um por um, tudo medidinho, tudo bem
feito. Fazia vinte unidades perfeitas, com filtro e tudo, dizia que era o Hollywood’zinho dele. Os acomodava numa
carteira vazia e só depois é que voltava a rotina de fumante. Depois de
Altamira, perdemos o contato. Até chegar a era das redes sociais, quando nos
reencontramos.
Em
comum, o gris dos cabelos e reviravoltas na vida. Colocamos em dia as
dificuldades, os tropeços e os ensinamentos que trouxemos de lá a cá. Aqui,
ali, estávamos nos chats a prosear sobre tudo.
Até
que... Sumiu. Não o vejo mais em mídia nenhuma. É desesperador isso. É um
profissional ativo, e mesmo que tenha enchido o saco e saído das redes sociais,
em outras plataformas na área de negócios, deveria achá-lo. Fiz contato com
amigos próximos, nada. Pesquisei em vários e mais absurdos ambientes e nada. A
falta de informação é dolorosa. Compreendo, mais ainda agora, o que sentem as
pessoas que tiveram seus entes queridos desaparecidos pela ditadura. O que meu
coração pede neste ano novo, é que meu amigo, onde estiver, esteja bem.
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