sábado, 28 de dezembro de 2024

crônica da semana - o que pede o coração

 O que pede o coração

Toda vez que vejo o Almir Sater, lembro do meu amigo. É que são muito parecidos. No jeito abandonado, na calma dos gestos, da voz. A aparência também. Meu amigo tinha aqueles olhos castelhanos algo tristes. A viola fecha as parecências. Foi vendo meu amigo tocar que conheci o som de Almir Sater e as versões autênticas das modas de viola, as variações estilísticas, a toada raiz de Tonico e Tinoco, a plangente levada de Pena Branca e Xavantinho, os incríveis versos populares que rompiam a barreira dos rótulos e das regras ... “Peguei, soltei, chacoalhei, guardei/tornei pegar, chacoalhar, guardar/Pra depois ponhar no mesmo lugar/Ah... vida minha”.

Semana passada, assistindo a uma reprise do programa Balaio, com o cantor, compositor e ator Almir Sater, na TV Cultura, dei conta que nunca mais tive contato com o meu amigo.

Geólogo de ponta, nos conhecemos em Rondônia. Naquela atmosfera produtiva, se destacava porque fazia ciência, ali no meio da pressão que a atividade mineradora exige. Éramos muito jovens e nas horas de folga, botávamos pra chulear. Paulistano clássico, sãopaulino, amante dos Beatles, Rolling Stone, conhecedor da Lira Paulistana, fazia solos fenomenais no violão. Logo me dei com ele e nos embolamos em combinas, tínhamos coisas pacas em comum.

Depois, veio pra Altamira fazer a Geologia das áreas de empréstimo para os projetos da Eletronorte e me resgatou de Rondônia para trabalhar com ele. Usou de toda a generosidade dele para grafar meu nome na capa da dissertação de mestrado que produziu sobre os terraços fluviais do Amazonas. Foi um período de muito aprendizado, de uma convivência cúmplice e de admiração mútua. Tivemos um contato mais próximo porque ficamos mais tempo no campo. Aí é que a gente vê os detalhes. De comportamento, de humor, de iniciativas. Sempre partilhávamos ações e precisões. Em uma ocasião, nos perdemos na mata. E olha, naquela época, dar mole ali na margem direita do Xingu, era meia bronca. Não havia infra, a região era praticamente desabitada. Era só mata, rio e céu azul. Quando nos perdemos entendi a mansidão daquele espírito. Não desesperou. Seguiu o protocolo. Buscou um curso d’água, me orientou na direção da jusante pela Regra dos Vês e depois de uma boa caminhada, estávamos achados.

Ainda no campo e também sobre aquela capacidade enorme de concentração que ele tinha, vale destacar nossa força tarefa para sustentar o maldito vício do cigarro. Como não tínhamos período certo de campo, às vezes nosso pacote de cigarros acabava e longe da cidade, tínhamos que pirangar com a peãozada o fornecimento de uns saquinhos de fumo trevo e alguns livros de abade. Eu, na ira do vício, tecia o meu cigarrinho todo troncho, todo babado, colocava um filtro de algodão e fumava logo. Ele não. Tecia devagarinho, um por um, tudo medidinho, tudo bem feito. Fazia vinte unidades perfeitas, com filtro e tudo, dizia que era o Hollywood’zinho dele. Os acomodava numa carteira vazia e só depois é que voltava a rotina de fumante. Depois de Altamira, perdemos o contato. Até chegar a era das redes sociais, quando nos reencontramos.

Em comum, o gris dos cabelos e reviravoltas na vida. Colocamos em dia as dificuldades, os tropeços e os ensinamentos que trouxemos de lá a cá. Aqui, ali, estávamos nos chats a prosear sobre tudo.

Até que... Sumiu. Não o vejo mais em mídia nenhuma. É desesperador isso. É um profissional ativo, e mesmo que tenha enchido o saco e saído das redes sociais, em outras plataformas na área de negócios, deveria achá-lo. Fiz contato com amigos próximos, nada. Pesquisei em vários e mais absurdos ambientes e nada. A falta de informação é dolorosa. Compreendo, mais ainda agora, o que sentem as pessoas que tiveram seus entes queridos desaparecidos pela ditadura. O que meu coração pede neste ano novo, é que meu amigo, onde estiver, esteja bem.

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