domingo, 18 de agosto de 2024

crônica da semana - por onde se enxêrga

 Por onde se enxêrga...

Sou do Norte, de tempo forte, quente úmido. Caboco da beira, dos parás e paranás entrelaçados de água e verbos.

E prestando aquele reparo no jeito, no dizque me disse diário, eu arrisco atestar que do paraensês raiz, a palavra que mais me parece da brenha das nossas naturezas e posses, da criação genuína e própria, é a dita ‘carapanã’, termo nosso que ninguém tasca, e que se impõe para identificar aquele mosquito zunidento que nos atenta o toutiço no melhor do sono. Eu que já andei pelos longes, vastos e densos mundos, em lugar nenhum dei de achar significante igual para o odioso mosquito. Se me perguntarem, qual a variação da língua que marca a região que moro, nem conto conversa. Ajo rápido e fácil na resposta e no alerta. “Gente, aqui se chama o mosquito da dengue de carapanã. Carapanã da dengue”. Outros fenômenos da língua não se esgueiram. Pelo contrário, dominam e nos dão a soberba da singularidade, nos dão destaque entre sotaques, dialetos e gírias. É o vocabulário onde nos abrigamos. Sonoro, muito especial e que, com uma ponta de orgulho chamamos de paraensês. Sou usuário desta língua. É minha língua materna. Vem, literalmente, de minha mãe.

Entendo que desenvolvo ainda hoje na minha rotina e na minha escrita, os mecanismos do discurso obedecendo uma lógica vã, espontânea. E disposta em fatias de expressões características e outras de arranjos na fala, ritmo, cadência.

Os termos e expressões são na escala de ruma e meia. E exercem uma função ali na biqueira de separatista da língua formal, vamos concordar. E tem aquela que se expõe consagrada como a mais comum e tipicamente paraense. É a tão repetida composição sincopada ‘pai d’égua’. É tão nossa, esta expressão, tão intensamente enraizada que, explicar para os que nos vêem de fora não é fácil. De outra forma, por cá, nos resolvemos nas mais pai d’éguinhas das compreensões mesmo diante das pai d’éguonas confusões dos visitantes.

É certo que falar o paraensês no seguir dos dias é um desafio. São muitas as pressões. Há a imposição de um padrão nacional, o apelo por um jeito uniforme, automático de falar e reagir. A gente escapa. Eu por mim, tenho como enormemente simpática a nossa maneira de dizer as coisas. Faço é gosto.

E nos detalhes, nas mais perfeitas percepções que minha mãe tinha na descrição do mundo. E da carapanã.

Carrego a herança da minha mãe neste recondicionamento lingüístico, nesta adaptação. Esta subversão da língua formal. E de vez em quando aqui em casa renovo, revivo as versões. Depois de uma noite me batendo com a cantilena da carapanã no ouvido, me avio a um recado no grupo da família pedindo que comprem remédio pra matar carapanã. Assim como mamãe, não chamo de veneno o agente de destruição dos indesejados. Chamo de remédio. O grupo da família pira e pilheria. No rastro me vêm outras peças de mamãe. Ambulância era assistência. Táxi, carro (chama o carro. Vai lá na Lomas chamar um carro, ela pedia para os meninos da rua). Palha de aço na antena da TV era uma porqueira (essa porqueira não presta. É só chiado). Centopéia das pequeninas era piolho de cobra; e das grandes, Santos pés.

Mamãe era paraense raiz e não se esquivava na filosofia, nos termos e na graça de uma elaboração conceitual para o doméstico conflito entre razão o poder. “para mim tanto faz, José como cazuza”, cravava expressando o mais profundo ceticismo.

E não se aperreava quando não havia numerário para comprar remédio de carapanã. Indicava, na hora de dormir, mesmo no calor de uma Belém de antes, se embrulhar dos pés à cabeça e deixar só o nariz de fora pra não forçar a suspiração.

Mamãe do norte, da margem dos parás e paranás. No outro dia, ainda que após a luta contra as carapanãs, se alguém lhe perguntasse sobre a vida, suavizava: “por onde se enxêrga... Vai bem”. Assim, desse jeitinho, com este ‘é’ fechado.

 

 

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