Por onde se enxêrga...
Sou
do Norte, de tempo forte, quente úmido. Caboco da beira, dos parás e paranás
entrelaçados de água e verbos.
E
prestando aquele reparo no jeito, no dizque me disse diário, eu arrisco atestar
que do paraensês raiz, a palavra que mais me parece da brenha das nossas
naturezas e posses, da criação genuína e própria, é a dita ‘carapanã’, termo
nosso que ninguém tasca, e que se impõe para identificar aquele mosquito
zunidento que nos atenta o toutiço no melhor do sono. Eu que já andei pelos
longes, vastos e densos mundos, em lugar nenhum dei de achar significante igual
para o odioso mosquito. Se me perguntarem, qual a variação da língua que marca
a região que moro, nem conto conversa. Ajo rápido e fácil na resposta e no
alerta. “Gente, aqui se chama o mosquito da dengue de carapanã. Carapanã da
dengue”. Outros fenômenos da língua não se esgueiram. Pelo contrário, dominam e
nos dão a soberba da singularidade, nos dão destaque entre sotaques, dialetos e
gírias. É o vocabulário onde nos abrigamos. Sonoro, muito especial e que, com
uma ponta de orgulho chamamos de paraensês. Sou usuário desta língua. É minha
língua materna. Vem, literalmente, de minha mãe.
Entendo
que desenvolvo ainda hoje na minha rotina e na minha escrita, os mecanismos do
discurso obedecendo uma lógica vã, espontânea. E disposta em fatias de
expressões características e outras de arranjos na fala, ritmo, cadência.
Os
termos e expressões são na escala de ruma e meia. E exercem uma função ali na
biqueira de separatista da língua formal, vamos concordar. E tem aquela que se
expõe consagrada como a mais comum e tipicamente paraense. É a tão repetida
composição sincopada ‘pai d’égua’. É tão nossa, esta expressão, tão
intensamente enraizada que, explicar para os que nos vêem de fora não é fácil.
De outra forma, por cá, nos resolvemos nas mais pai d’éguinhas das compreensões
mesmo diante das pai d’éguonas confusões dos visitantes.
É
certo que falar o paraensês no seguir dos dias é um desafio. São muitas as
pressões. Há a imposição de um padrão nacional, o apelo por um jeito uniforme,
automático de falar e reagir. A gente escapa. Eu por mim, tenho como
enormemente simpática a nossa maneira de dizer as coisas. Faço é gosto.
E
nos detalhes, nas mais perfeitas percepções que minha mãe tinha na descrição do
mundo. E da carapanã.
Carrego
a herança da minha mãe neste recondicionamento lingüístico, nesta adaptação.
Esta subversão da língua formal. E de vez em quando aqui em casa renovo, revivo
as versões. Depois de uma noite me batendo com a cantilena da carapanã no
ouvido, me avio a um recado no grupo da família pedindo que comprem remédio pra
matar carapanã. Assim como mamãe, não chamo de veneno o agente de destruição
dos indesejados. Chamo de remédio. O grupo da família pira e pilheria. No
rastro me vêm outras peças de mamãe. Ambulância era assistência. Táxi, carro (chama
o carro. Vai lá na Lomas chamar um carro, ela pedia para os meninos da rua).
Palha de aço na antena da TV era uma porqueira (essa porqueira não presta. É só
chiado). Centopéia das pequeninas era piolho de cobra; e das grandes, Santos
pés.
Mamãe
era paraense raiz e não se esquivava na filosofia, nos termos e na graça de uma
elaboração conceitual para o doméstico conflito entre razão o poder. “para mim
tanto faz, José como cazuza”, cravava expressando o mais profundo ceticismo.
E
não se aperreava quando não havia numerário para comprar remédio de carapanã. Indicava,
na hora de dormir, mesmo no calor de uma Belém de antes, se embrulhar dos pés à
cabeça e deixar só o nariz de fora pra não forçar a suspiração.
Mamãe
do norte, da margem dos parás e paranás. No outro dia, ainda que após a luta
contra as carapanãs, se alguém lhe perguntasse sobre a vida, suavizava: “por
onde se enxêrga... Vai bem”. Assim, desse jeitinho, com este ‘é’ fechado.
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