O rei e a amiga dele
Um
dia me vi rei de terra nenhuma. Meu horizonte e minhas posses eram divisados a
partir de uma varandinha fantástica que se deslocava no espaço entre os andares
do Manoel Pinto da Silva e as calçadas que volteiam o Bosque Rodrigues Alves.
Reservava,
quando no prédio tradicional, ali pelo centro da cidade, um tempo sagrado para
o café com a amiga, no final da tarde. Já nos arredores do Bosque, a cada ciclo
de floração dos Ipês da 25, nos programávamos para nos confundir com o vulgo em
caminhadas matinais, sempre a espera de um encontro com o bando monitorado de
Jurupari que, de galho em galho, anima aquela mata residual urbana desde as eras
idas. Chegávamos ao povo também para empreender as vozes, os andares, as
corridinhas custosas que pautam vontades e ilusões aeróbicas.
O
rei está nu. Sem rir, sem falar, nem por cima, nem por baixo. Cansado das lidas
e das artes. Pira-paz.
(o
respirar constante, o abrir e fechar os olhos umedecidos; simples translados de
ruas e pensamentos vãos representam rotinas traiçoeiras, falsas justificativas.
Tutelas antecipadas, desprovidas de remorsos, isentas de dó, piedade ou alguma
expectativa de generosidade sinalizam o encontro das retas no finito do senso.
A verdade é que o rei se engana. Não quer ser herói. Nem ostentar coroa de
brilho pálido. Quer um leito confortável, a varanda no fim da tarde, teimar
viver, amar, desfazer-se de terras imaginárias e posses pulverizáveis. Espera
ter um dia após outro para espiar o bailado das estrelas, o caminhar imponente
do sol, uma chuva aqui, ali, pra refrescar, o gorjeio dos pássaros ao largo,
água limpa e pura pra beber. E dormir muito. Não se importa se as chuteiras que
não chutam mais, sejam penduradas no prego atrás da porta).
O
café fumegante estimula cuidados. A amiga ajeita os lábios à borda da tigela,
faz menção de quem toca flauta transversal, franze o nariz pra reagir ao
fumegado aquecido, dá uma prova no quentinho do café e se anima a um comentário
banal apontando para um lugar qualquer da Praça da República. Atesto ser um
movimento pretérito em jeito de se acabar. São as lendas boêmias vagando entre
as mangueiras. Mulheres de cabelos aloirados, lábios avolumados pelo batom e
cigarro entre os dedos. O olhar recriador flagra marinheiros de banzo,
abandonados a meridianos de casa, em busca de ligeiro prazer, ao escondido da
Samaúma. A memória localiza garçons de camisas bem passadas, contando um
punhado de notas velhas abrigadas ao contorno da mão. Os dedos triscando o
pacote, ao mesmo tempo sendo levados à ponta da língua, umedecidos, depois
voltando a triscar o bolo de notas. É o apurado do momento. Mais uma cerveja,
mesa e cadeira para a poesia. A chuva chega e joga todo mundo para a beirada do
teatro. Fim de tarde e da história do bar.
Já
na calçada do Bosque, a amiga admite como a sociedade é conservadora. Um senhor
caminha de bermuda com cinto preto de fivela imensa, camisa de botão e um ar
severo de justo e fiel. Um casal volteia de mãos dadas em postura marcial. Um
caminhar disciplinado na ordem e no progresso. O homem, dono dos destinos,
regras e todas as sortes e futuros, dá o ritmo da caminhada. A mulher que lute.
Um
dia me vi rei. Tracei a saga inverídica de minhas conquistas. Idealizei uma
amiga para partilhar comigo um cafezinho e risinhos inconfessos, suspeitos. Do
conforto de uma sacada idealizada ou mesmo no rés do chão, modelei uma
civilidade para ser criticada, observada, medida e que, embora conservadora, se
fez forçosamente acessível. Saltei para o meio do meu povo e do meu mundo. Reconheci
antigos fantasmas, ébrios cambaleantes com a cara amassada de sono. Quedei-me à
finitude dos meus horizontes. Senti o amarelo dos ipês tocar minhas retinas e permiti
às assombrações diurnas, sem que eu me esquivasse um isso, me perceberem cansado...Pira-paz,
não quero mais.
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