Casaquinho felpudo
Quando
chegamos do Acre, mamãe cuidou que viesse o casaquinho de todo mundo na
bagagem. Cada um tinha o seu. Tecido espesso, dizia-se felpudo, punhos
franzidos e golas largas e derramadas para o além do pescoço. Proteção pra lá
de bem acabada contra o frio. Peça, rápido descobrimos, que não teria serventia
nenhuma aqui. Causava até estranheza aos coleguinhas da antiga Marquês quando
nós, montados na gabolice, mostrávamos na rua que tínhamos roupinhas de frio.
Em
Belém, nem debaixo de um toró federal faz o frio que nossos casaquinhos esperavam.
Mas, subindo o Madeira, o Purus, naquelas paragens ocidentais do Acre, Rondônia
e uma beiradinha do Amazonas, desde agora maio, até os triscas primaveris de
setembro, a temperatura cai de fazer o beiço rachar.
Agora
mesmo, coisa de dois dias atrás, vi na TV a previsão do tempo anunciando a
famosa e incompreendida friagem chegando por aquelas bandas. É o contado de
maio. De tão justo e certo, que me arvoro a arremedar, dizque, os meteorologistas
e traço as expectativas. Também, né, tá na minha história. É batata, todo dia
24 de maio dá aquele friozinho por ali. Sei porque é dia de Nossa Senhora
Auxiliadora, padroeira de Porto Velho e neste dia, era feriado e eu não trabalhava.
Era a conta e o azeite do azeitado. Não precisava sair para o trampo, metia uma
meia, calça comprida, blusa, casaco, um roupão que eu tinha comprado num brechó
aqui no Centro Auxilium, com a irmã Clara (tudo a ver), calçava as luvas, aquelas
do EPI que a gente usava no trabalho mesmo, e me entocava bem entocado pra
ninguém me achar. Ficava o dia todo batendo queixo.
Para
nós acostumados com o quente e úmido amazônico não é de prima que entendemos a
friagem. Lá mesmo em Rondônia rolavam explicações desencontradas. Uma bem atraente
por causa de uma lógica gelada da especulação, dizia que o frio era por causa
do descongelamento que ocorria na cordilheira dos Andes. Como as montanhas são
naquele rumo, me permitia dormir e acordar todo embrulhado aceitando esta
justificativa. Até que percebi, pelo noticiário do clima, que era muita, mas
muita coincidência a temperatura cair ali naquela banda do Norte, exatamente no
tempo mesmo em que o frio estava tinindo no Sul do país. Era só fazer a
ligação, traçar, com algumas curvinhas, o caminho inverso dos rios voadores (um
sistema de circulação continental que anos mais tarde eu iria conhecer como um
consagrado resultado de pesquisa). Não fossem as curvinhas e as interações
termodinâmicas desse ar frio e seco com a grande extensão de floresta
encharcada e aquecida, poríamos as meias e as luvas aqui em Belém também. Ouvi
dizer que o frio chega, mesmo que abrandado, em Humaitá, ali no Amazonas. Quase
à nossa porta. Mais um pouquinho, heim... Eu iria achar é bom. Aprecio e me dou
com o recolhimento, com as condutas ensimesmadas, alheias aos arredores,
cuidando apenas da nossa pulsação, que o clima frio enseja. Mas não se garante
até aqui a friagem não, fiquemos com as nossas mínimas de 24 graus que já
estamos no lucro e no moleton.
A
friagem veio aquecer minhas recordações, entendo que, por causa das colunas
diárias de previsões do tempo para todo o Brasil, quando dei com o fenômeno
acontecendo na região de Rio Branco, Porto Velho e entornos. Mas do mesmo
jeito, porque quinta-feira passada foi o dia do Geólogo e acredito que os
trabalhos que fiz, ligados à Geologia, no início da década de 80 me
proporcionaram reviver naquele espaço rondoniense, o tempo do meu casaquinho
felpudo, lá no Xapuri, lá no Xapuri, lá no Xapuri.
E
também porque meu filho é Geólogo, boa parte dos meus amigos são Geólogos e
formam um grupo por quem tenho muita admiração e a quem dedico muito carinho e
afeto. A eles meus parabéns e uma vida com muito, ou tantos prazeres forem possíveis,
no envolvimento com a Geologia. Esta ciência encantadora.