sábado, 11 de janeiro de 2020

crônica da semana - carreira de bulacha


Carreira de bulacha
Véspera de Natal. Corre daqui, corre d’acolá, ajeita, arruma, arreda. Liga o forno, unta o charão, procura o pano de prato que não sabe por onde largou. Um menino sempre atentando, pendurado na perna da gente, pedindo alguma coisa impossível de atender. A árvore de Natal rebola da mesinha e leva tudo quanto é fiação e luzinhas junto. Peralá, peralá! A ervilha. Faltou a ervilha!
Fui convocado para sair d’pressinha em busca da ervilha. E, aproveitando o ensejo, trazer logo uma cabeça de alho, uma caixinha de palitos, azeitona sem caroço, uma tirinha de bacon e torcer para que tenha pelo menos dois filmes de papel celofane em cores diferentes por aí, porque, segundo a etiqueta natalina, alguns brinquedos que vão ser distribuídos, além de embrulhados em papel de presente, ainda precisam de um papel celofane em volta, se não, não é presente que se preze. Vai dar é confusão.
Não foi preciso andar muito para perceber que no entorno de onde moro tem pencas de pequenos comércios, a antiga taberna, armarinhos acanhados, quitandas, casas com plaquinha no portão. Quando a gente sai assim, aperreado de demandas é que percebe como, de um tempo pra cá, a economia informal ganhou espaço na baixa da Pedreira.
Eu que não sou nem besta nem nada, ensejei logo a compra da minha gelada no puxadinho que já sou freguês. Só que lá não tinha tudo que eu precisava. Deixei na espera e estiquei até um mercadinho na esquina. Naquela hora, a gente não podia entrar. Atendimento só pela grade. Agora imagine eu que comparo preço. Então dei uma pirangada. Fiquei pedindo pela grade uma amostra das cervejas da prateleira e fazendo a conta de quanto saía o mililitro. Não foi uma boa idéia ficar com o celular exposto assim, do lado de fora, para fazer as continhas. O fato do mercadinho estar atendendo pelas brechas do portão alguma coisa significava. Desisti e voltei para o meu freguês de costume, o mililitro lá é até em conta e um centavinho a mais, um a menos, não vai me alfobitar.
No puxadinho, fui atendido com as cervejas, a cabeça de alho, a azeitona e a tira de bacon. Enquanto o rapazinho me aviava as coisas, duas garotas chegaram e ligeirinho foram encarreirando seus pedidos. Um dos itens da lista me cutucou a cuca. Entre os produtos da aviação, pediram uma carreira de ‘bulacha’.
Saí de lá com minhas compras e embiquei para o canal, atrás das coisas que estavam faltando.
No caminho, fui reconhecendo a realidade de um país que trouxe de volta as compras no retalho. Admiti a transformação no entorno, elevando para a categoria de empreendedores, pessoas que, até bem pouco tempo, eram apenas nossas vizinhas. Vivemos um revés histórico de aviamento em taberna expresso no pão e meio e o troco de manteiga, nas duas medidas de óleo, na meia barra de sabão, na boneca de anil, na quarta de feijão e no quartilho de querosene.
Tomei aquela carreira de ‘bulacha’ como a tradução de uma queda brusca no poder aquisitivo da periferia. Isso convertido em cerveja quer dizer que o mililitro sai bem mais caro. É a desvalorização dos minguados dinheirinhos nossos se manifestando de forma avassaladora.
A velha e onerada prática do retalho camufla a crise. Cria empreendedores e consumidores a quartilho.
Nessa de ficar refletindo sobre as derrapagens da economia, patetei e voltei pra casa.
Cheguei sem a ervilha e sem o charme do papel celofane. Deu confusão, pleno Natal.
                   

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